FOTO 1 ‒
08/01/2007, São Paulo: Na época em que fazia o doutorado em filosofia medieval na
USP ‒ de 2003 a 2010 ‒, ocupei-me em observar meus sobrinhos-netos e escrever
sobre alguns aspectos e conceitos filosóficos presentes na infância. Foi uma excelente terapia,
pois a aventura de tentar o doutorado já depois dos sessenta anos foi uma
tarefa difícil e que exigiu muito de mim em termos de pesquisa e estudo. Thales
nasceu em 13/12/2005, quando eu já estava há dois anos em São Paulo. Foram
muitas as ideias filosóficas que ele me repassou na beleza e plenitude de sua pequena
infância. Na foto acima, estávamos num momento de folga em um Shopping. Nas
visitas que fazia à minha sobrinha Erimércia Freire, seu esposo Émerson Rolim
Cuellas, e seus filhos Ítalo e Thales, eles sempre me davam uma atenção especial,
como no momento dessa foto.
A RICA FILOSOFIA
DE THALES [i]
ℛenivaldo
ℛufino
A referência
poderia ser a Tales de Mileto (c. 624 a. C. ‒ c. 546 a. C. [78]), filósofo
grego, mas não é.
Tem tudo para ser, pois se trata daquele que é considerado fundador da
filosofia Ocidental, por ter sido o primeiro a tentar dar uma explicação
racional do mundo, com sua filosofia da natureza, que considerava a água como
elemento fundador do universo. E, como se não bastasse todas essas ricas
informações, esse filósofo e matemático grego era considerado o mais antigo dos
chamados Sete Sábios da Grécia [ii].
Mesmo assim, não é a ele que me refiro, pois a rica filosofia à qual me
reporto, aqui, é outra. Trata-se da rica filosofia do meu sobrinho‒neto Thales,
na exuberância da primeira etapa de sua vida, a infância, a academia da
sabedoria natural.
Pensando bem,
Tales de Mileto é importante, sim, mesmo que isso seja contraditório ou
paradoxal com o que foi dito acima. Já que
todo o recheio deste artigo é de fundo agostiniano, serei fiel a Agostinho de Hipona
(354‒430 [75]): defenderei os dois lados do paradoxo. Ou seja, no presente caso, Tales de
Mileto é importante e, ao mesmo tempo, não é importante. Começo pela negativa:
não é importante, porque o objeto central deste trabalho intelectual é, de
fato, Thales, o garoto na exuberância de sua primeira infância. E concluo pelo
positivo: Tales de Mileto é importante como fonte de inspiração e, ainda,
porque é importante de verdade como um dos principais filósofos da Antiguidade.
Além do mais, está visceralmente ligado à primeira riqueza filosófica a ser
explorada neste artigo. Senão, vejamos:
1. O filósofo da água e... da fumaça
Onde há água há
fumaça? Não, não é bem assim. Onde há fumaça, há fogo. Agora sim, está certo e
dentro dos padrões naturais e filosóficos. Mas
o primeiro – ligeiramente modificado: onde há fumaça há água – está certo? Vamos admitir que sim, pois
está tudo no bojo da filosofia natural. E onde se localiza o nosso Thales nisso
tudo? Paradoxalmente – para continuar fiel a Agostinho –, tanto de um lado
quanto do outro.
Na terça-feira 22 de julho de 2008, três dias depois
da suntuosa festa do casamento de Ricardo com minha querida sobrinha Lyzandra,
encontro-me na casa dos Freire/Cuellas em companhia da minha querida e
“dolorida” família. Dolorida, pois todos sofríamos um pouco com as
dores nos pés de Cosma, minha esposa, por problemas de circulação e também por
outras questões, como o percurso de avião no voo Recife/São Paulo, por exemplo,
e a necessidade de mais repouso. Ali estávamos todos nós, em pleno repouso e
desfrute de uma hospitalidade singular, quando Émerson pede que cheire o cabelo
de Thales e pergunte que cheiro de fumaça é aquele. Agi como recomendado.
Cheirei a cabecinha dele e perguntei: – “Que cheiro de fumaça é esse no seu
cabelo?” Ora, se onde há fumaça há fogo, ou seja, se fumaça é sinal de fogo, se
fumaça aponta para alguma coisa que não ela mesma – para utilizar, mais uma
vez, recurso da filosofia agostiniana, que valoriza tanto a questão de signo e significado –, então aquele imaginário “cheiro” de fumaça, aquele signum, possivelmente apontaria para
alguma coisa que não ele mesmo. Nesses termos, a lógica do pequeno vai
funcionar perfeitamente.
O que Thales não
alcança, nem tem idade suficiente para alcançar, são os recursos da razão que
ajudam a entender com maior precisão a importância e o que quer dizer signo e
significado. Ou seja, que fumaça é signo de fogo, mas de fogo, mesmo, e não de
algo que apenas tenha a aparência de fogo. Esse alcance ele não tem, apesar de
ter o sentido lógico da coisa, pois uma vez provocado pela minha pergunta: –
“Que cheiro de fumaça é esse no seu cabelo?”, ele responde de imediato: – “É do
casamento”. O casamento estava tão quente assim? Ora, o “fogo” do casamento
nada mais era do que aquilo que estava por trás do gelo seco, ou seja, água.
Sendo assim, nem a fumaça era fumaça, nem o fogo era fogo. A fumaça era algo similar à fumaça e o fogo era... água. O signo, ali, apontava
para outra coisa que não ele mesmo e nem o fogo.
Fiquei muito
curioso para saber o que ele faria, a partir dali, com aquele “achado” que
tinha muito a ver com a filosofia de Tales de Mileto. No dia seguinte, 23, seu
tio Van – meu sobrinho Erivan –,
chegou e foi beijá-lo. Recomendei como Émerson no dia anterior. Quando Van lhe dirige a mesma pergunta: – “Que
cheiro de fumaça é esse no seu cabelo?”, ele agora dá outra resposta: – “Lavei
meu cabelo”. Até que enfim evoluíste intelectualmente, meu querido garoto, e
fizeste o que deverias ter feito desde o casamento: lavar o cabelo para tirar
aquele esquisito cheiro de “fumaça” de gelo seco, signo que aponta não para o
fogo de Parmênides (539? ‒ 450? a. C. [89]), mas para a água de Tales de
Mileto.
2. A pura filosofia agostiniana do humilis e sublimis
Dada a base cristã
de Agostinho, dois dos mais belos conceitos que ele desenvolve em sua filosofia
são exatamente o da humildade e da sublimidade, ou o humilis e o sublimis.
Este, representado na grandeza de Deus, aquele, na baixeza do homem.
O homem é, por
natureza, um ser decaído do seu estado de inocência original, por causa da
grave falha de desobedecer ao preceito divino. Preceito este, por sinal, de
transparência e simplicidade infantil. Por conta desse fracasso, o homem é e,
ao mesmo tempo, não é. A mutabilidade que acomete sua alma faz com que ele seja
ao mesmo tempo em que está deixando de ser. Só Deus é. Dito de outra maneira,
só Deus é de forma absoluta, só Deus é o ser por excelência. Deus é o ser
sublime, cuja sublimidade a pobreza da linguagem humana jamais será capaz de
descrever sequer por aproximação. Por isso mesmo, além de sublime é também
inefável, isto é, não pode ser nomeado nem descrito com o recurso da palavra,
que nada diz de Deus, a não ser em termos apofáticos, ou seja, tentando
descrevê-lo de forma negativa. O que conseguimos dizer de Deus, então, é nada
dizer. Melhor, portanto, calar, ficar em total
silêncio diante do profundo mistério. Ou, então, ter consciência da ignorância e dizer como
disse Sócrates (470 a. C. ‒ 399 a. C, [70]): “O que sei é que nada sei”.
Ocorre que Agostinho, com ousadia admirável e
partindo do ponto preciso da encarnação de Cristo, insere o sublimis no humano e, através dele,
eleva o humilis à condição da
excelsitude própria do sublimis. O que ele faz é simplesmente
inverter as pedras, sem alterar a beleza e a grandiosidade do jogo que se
esconde por trás da providência divina.
Por isso mesmo é que o humilde será exaltado e o soberbo será humilhado, pois o
soberbo é o humilis falsificado por tentar
colocar-se no lugar do sublimis e
fazer-se fim em si mesmo e para si mesmo. Todavia, ser pequeno até o chão é que
é o lugar natural do homem, pelo menos no pensamento de Agostinho de Hipona.
Ora, o que
acontece com o nosso querido Thales quando falta apenas cerca de um mês para
completar três anos, isso em novembro de 2008? Ele
profere uma frase tão linda e tão significativamente filosófica, que fica
difícil até de acreditar que tenha saído da boca de uma criança; mas, segundo a
Bíblia, é da boca das crianças e dos lactentes que sai o perfeito louvor [iii]. São palavras infantis, usadas por alguém que não dispõe
de nenhum domínio intelectual da fala, mas que são dignas de constar de
qualquer epígrafe e de qualquer obra da literatura.
Com seu jeito
amável, afável e carismático, ele bate um gostoso papo com tio Van, um verdadeiro gigante de pouco mais
de um metro e oitenta de altura. O abismo antropológico
é imenso entre os dois, em termos de estatura. Em sentido antropológico, de
fato, ambos são dois gigantes, independentemente desse aparente abismo. A certo
momento da fala entre tio e sobrinho, este levanta os olhinhos às alturas, onde
paira o olhar daquele, e profere: – “Tio Van
é alto até o teto, eu sou baixo até o chão”.
3. O adequado uso dos sentidos pela alma
Para Agostinho, o comando dos sentidos está na
alma e não no corpo. A alma guarda a integridade de todos os sentidos apelando
ao sentido interior. Esse cuidado da alma para
manter o corpo equilibrado e incólume, é um vestígio
da secretíssima unidade da qual lhe vem o ser, razão que o leva a agradecer
a Deus, mesmo que tivesse vivido apenas até à infância [iv].
Sendo assim, quem vê, propriamente, não é o sentido da visão, mas a alma
através do sentido da visão. E, de forma similar, com os demais sentidos [v].
O adequado uso dos sentidos por Thales, então, tanto reflete esse cuidado da
alma para manter a integridade do corpo, quanto as expressões dos estados
anímicos, que passam pelo prazer, pela dor, pela alegria e, claro, até pelos
valores éticos e estéticos. Que ninguém se
engane: a alma infantil, isto é, a alma em estado inicial, tem seus olhinhos bem abertos para o mundo e para
as pessoas entre as quais está inserida. Ela é muito mais atenta do que muitos
atentos adultos com suas almas em estado mais avançado.
Naquele dia, a
alma de Thales, no comando de todos os sentidos, está em quase perfeito
equilíbrio consigo mesma, pois desfruta da doce companhia de vovó Áurea [vi].
E a estabilidade anímica que se processa no
corpo e através do corpo é tão mais significativa pelo fato de Vovó ser a mamãe
de Mamãe. É por
isso que seus pequenos e inocentes membros estão como que elétricos, obedecendo
aos comandos da alma: suas perninhas se movimentam com uma agilidade incrível;
suas mãos agarram as coisas, brincam, gesticulam incansáveis; seus ouvidos
estão atentos a cada som, a cada palavra, a cada novidade; o olfato se deleita
com os aromas das comidas e guloseimas; seu gosto gosta das coisas que gosta,
ainda mais com o bom gosto de Vovó; e as janelas
da alma estão escancaradas, faiscantes, atentas ao menor movimento, às mais
imperceptíveis mudanças no espaço ao derredor, inclusive as estéticas. Seus olhinhos, quer dizer, as janelas da alma, estão brilhantes e sequiosos por novidades.
O papo entre o
neto e a Avó, naquele momento, parece ser completamente distinto de tudo que
foi dito acima. Pena que, feito alguns raros e antiquíssimos manuscritos dos
quais nada mais resta senão fragmentos, apenas uma frase foi salva de toda
aquela conversa. Cinco palavras que são suficientes ao nosso propósito, pois se
trata de um eloquente fragmento de
fundo filosófico. Bonita, vaidosa, de aparência jovial, Vovó está de cabelos
bem cuidados – com um tipo de corte um pouco diferente do costumeiro – quando,
de repente, as mechas esvoaçantes ao sabor do vento caem sobre o seu rosto.
Atentíssima, a alma do menino tem sua atenção despertada pelo sentido da visão,
por ela mesma comandado e, numa fração de segundos, aciona o intelecto e a fala
da irrequieta criança, que balbucia numa prosódia parcialmente inarticulada: -
“Seu cabelo tá etanho, Vó”.
4. Agostinho e Ambrósio: leitura silenciosa e metáforas
Se existe um
recurso retórico utilizado por Agostinho mais do que outros, é o da metáfora.
São tantas e tão variadas, que formam um capítulo à parte [vii].
Outro recurso que desperta a atenção do hiponense, pouco comum na época, é o do
método da leitura silenciosa, utilizado por Ambrósio (340? ‒ 397 [57]), bispo
de Milão: “Mas, quando (Ambrósio) lia, os olhos percorriam as páginas, e o seu
coração penetrava o sentido, enquanto a voz e a língua se mantinham em repouso” [viii].
O grande admirador de Ambrósio, aprendiz e
beneficiário da leitura silenciosa, continua o relato, dizendo que ele era
visto sempre lendo “em silêncio e nunca de outra forma”, concentrado de tal
maneira que muitas vezes as pessoas esperavam longo tempo em silêncio e, não
ousando perturbá-lo, iam embora sem serem atendidas. Para Agostinho isso não
representava problema algum, pois entendia as razões do bispo nessa parada
obrigatória para alimentar a alma com
a leitura, além de ter recebido dele a necessária e inestimável ajuda para a
compreensão do duplo sentido das Escrituras – espiritual e alegórico – e para
outras questões que complicaram sua vida e o mantiveram longe da fé da igreja
católica.
Agora, vamos falar da terceira pessoa dessa trindade, isto é, de Thales, para saber
o motivo de incluir seu nome nessa relação filosófica com os dois grandes
gênios da patrística. Leitura em silêncio não é o seu prato predileto, pois nessa época nem
sequer sabia ler. Mas a curiosidade (curiositas),
aqui como virtude e não como vício, é própria da natureza de sua alma infantil,
como é própria da natureza da alma humana em sentido geral. E o que desperta a
curiosidade do pequeno?
O que desperta a curiosidade de Thales é
exatamente Mamãe Mercinha que lê silenciosamente sobre a cama, mesmo não sendo
agostiniana. Ele
chega de mansinho, com aquele jeito carinhoso e questionador, e fica parado,
atento, observando, olhando e como quem nada entende daquilo que está vendo. E
ele está exatamente em silêncio, admirado com aquela cena tão bizarra à sua
compreensão: a mãe está com um livro nas mãos, percorrendo a página com o
olhar, mas sua boca está fechada, seus lábios estão cerrados, ou seja, reina um
silêncio absoluto na aconchegante ambiência do aposento de repouso de Papai e Mamãe.
A alma do infante se inquieta, fica perplexa
e, sem conseguir segurar por mais tempo a angústia que toda aquela esquisitice lhe
desperta, indaga: – “O que você está fazendo?” Essa é uma boa pergunta, garoto,
e pode lhe levar às fontes da filosofia! Agora, vamos ver como você se sai diante da
resposta que mamãe lhe dá de imediato: – “Estou lendo”. Sua alma aciona todos os comandos sensoriais possíveis,
numa fração de segundos – pois ele fica agoniado com aquela resposta ainda mais
esdrúxula, aparentemente evasiva –, e contra-argumenta com um duplo raciocínio,
de pergunta e resposta: – “Lendo? Você não está lendo. Sua boca está parada”. E agora, Mamãe,
como sair dessa dificuldade que lhe foi imposta pela lógica infantil?
Veja que seu
herdeiro está filosoficamente tão abismado diante de você, quase tanto quanto
Agostinho diante de Ambrósio. É isso que dá ter uma alma racional no comando, o
que não seria o mesmo caso se apenas o corpo estivesse no
comando, coisa que o corpo não tem condições.
Mamãe, pronta para qualquer embate, haja vista sua argúcia e a longa
experiência no magistério infantil, tenta sair daquele embaraço com esta: – “Eu
estou lendo com o pensamento”. Ou seja, apela ao verbo interior e ao recurso
retórico da metáfora. O pensamento lê? Mas o pensamento lê com que, com outro
pensamento? Como funciona essa máquina
tão complexa, ainda mais para a filosofia que fica só insistindo com perguntas
e mais perguntas?
E agora, como se
porta o nosso herói? Aceitará simplesmente esse tipo de resposta metafórica?
Jamais, pois pela sua lógica, que está correta, se o pensamento tem realmente
condições de ler, ele precisaria pelo menos de um recurso especial, também
metafórico, porém ainda mais decisivo e sensorial. E por que ele chega à
conclusão de que com a ajuda de um dos sentidos o pensamento teria condições de
ler? Simples: porque ‒ “Pensamento não tem boca”. Agora, se a
leitura fosse feita com a boca do pensamento, tudo bem! Se Mamãe tivesse
respondido: estou lendo com a boca do
pensamento – ou do coração – ele teria entendido em gênero, número e grau!
E com a doçura do seu pequeno coração, daria razão também a Agostinho, ou
receberia a aprovação e elogio do nosso filósofo que, falando sobre esse
assunto tão deslumbrante, diz que a boca de Ambrósio, oculta no coração, ruminava
saborosos deleites no pão do Senhor: “[...] que saborosos deleites a sua boca, oculta no seu coração, ruminava no
teu pão” (et occultum os eius, quod erat
in corde eius, quam sapida gaudia de pane tuo ruminaret (Confissões VI
iii 3).
5. O filósofo da geometria
Com a tese de doutorado já pronta e repassada
ao orientador Moacyr Novaes, em 13/10/2010, eu me dei ao luxo de folgar um
pouco da preocupação com minha criança acadêmica e passar um ou dois dias na
casa do querido filósofo mirim, como convidado de honra de seus pais. O
resultado é que terminei ficando por lá uma semana inteira: de 10 a 17.
Levei minhas
poesias e desenhos na bagagem. Queria mostrar
coincidências que ocorreram ao resgatar revistas da década de 1960, com
reportagens e fotos da atriz italiana Gina Lollobrigida (04/07/1927), a quem
admiro desde meus 12 anos de idade, quando ainda morava em Arcoverde, PE, isto
é, desde a segunda infância. Algumas dessas publicações trazem em suas páginas fotos
que usei como modelo para desenhos que ainda conservo no meu acervo.
Ao mostrar uma dessas obras a Émerson e
Mercinha, sob os olhares atentos dos dois queridos sobrinhos‒netos, Ítalo, com
nove anos, e Thales, com quatro anos e dez meses, a exposição do futuro doutor
em filosofia pela USP estava um tanto fora dos padrões exigidos pela mais pura
geometria, principalmente diante do pai
da filosofia ocidental. O desatento e quadrado
doutorando explicava que quando ia desenhar traçava um quadrado como aquele e a
partir daí começava a executar sua obra. Foi nesse momento que percebi Thales aos cochichos
com sua mãe. Ao notar aquela cena, entendi que
se um filósofo fala em surdina, mesmo que o estrépito da voz não se faça ouvir,
algo importante está sendo dito. Parei um pouco a explicação e perguntei do que se
tratava. O garoto‒filósofo dissera ao ouvido
de sua mãe: ‒ “Isso não é um quadrado, isso é um retângulo”. E era mesmo. Errado estava o
quadrado do tio‒avô que disse que um retângulo era quadrado.
FOTOS
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FOTO 10 ‒ 08/01/2007, Recife, PE: O garoto cresceu e se transformou num lindo rapaz, porém a criança continua nele, pois para onde teria ido?
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NOTAS
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[i] Estou dando um intervalo nas publicações
sobre a Primeira Igreja Batista de Beberibe, por conta do fato de que o
terceiro artigo está dependendo de muita pesquisa em fotos e material que tenho
no meu acervo. Uma vez que essa nova tarefa das memórias pastorais será
gigantesca, pois já temos assunto para mais de dois anos, certamente teremos
outros momentos de intervalo. E nada melhor do que rechear com filosofia, desde
que filosofia infantil.
[ii] Cícero (Marco Túlio Cícero, 106‒43 a. C.
[63]), famoso filósofo, retórico e político romano, diz o seguinte sobre os Sete
Sábios gregos: “Porque não creio que Metrodoro tivesse tomado este nome (de
sábio) antes, mas, vendo que Epicuro se fazia chamar o sábio, não quis recusar
tão grande benefício. E, quanto àqueles antigos sete, não foram sábios por
vontade própria, mas pelo sufrágio do povo”; e o tradutor, em nota de rodapé,
assim se expressa: “Os Sete Sábios, nome dado a sete filósofos e estadistas da
antiga Grécia. Segundo a tradição, eram eles: Bias, Cleóbulo, Míson, Pítaco,
Quílon, Sólon e Tales de Mileto”, cfe.
CÍCERO. Do sumo bem e do sumo mal (de
finibus bonorum et malorum). Trad. Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. 203 p. ISBN 85-336-2163-9. II iii, p. 36, nota 2.
[iii] Confira Salmos viii 3.
[iv] Confira Confissões
I xx 31: “Mas a ti, Senhor, criador sublime e bom acima de todas as coisas, a
ti que governas o universo, a ti, nosso Deus, te dou graças, ainda que tivesses
querido que eu fosse apenas criança. Porque mesmo então eu existia, vivia e
sentia, e cuidava da minha incolumidade, vestígio da secretíssima unidade da
qual me vinha o ser, guardava com o sentido interior a integridade dos meus
sentidos e, nesses mesmos pequenos pensamentos sobre pequenas coisas,
deleitava-me com a verdade. Não queria ser enganado, tinha boa memória,
instruía-me com a convivência, suavizava-me com a amizade, evitava a dor, a
abjeção, a ignorância. Que havia em tal ser que não fosse digno de admiração e
louvor? Mas todas essas coisas são dádivas do meu Deus. Não fui eu que as dei a
mim mesmo: não apenas são coisas boas, mas, além disso, todas essas coisas sou
eu. É bom quem me fez, e ele próprio é o meu bem e diante dele exulto por todos
os bens com que me fez ser, quando garoto” (sed
tamen, domine, tibi excellentissimo, optimo conditori et rectori uniuersitatis,
deo nostro gratias, etiamsi me puerum tantum esse uoluisses. eram enim etiam
tunc, uiuebam atque sentiebam meamque incolumitatem, uestigium secretissimae
unitatis, ex qua eram, curae habebam, custodiebam interiore sensu integritatem
sensuum meorum inque ipsis paruis paruarumque rerum cogitationibus ueritate
delectabar. falli nolebam, memoria uigebam, locutione instruebar, amicitia
mulcebar, fugiebam dolorem, abiectionem, ignorantiam. quid in tali animante non
mirabile atque laudabile? at ista omnia dei mei dona sunt, non mihi ego dedi
haec: et bona sunt et haec omnia ego. bonus ergo est qui fecit me, et ipse est
bonum meum et illi exulto bonis omnibus, quibus etiam puer eram).
[v] Conferir de genesi ad litteram X xii 21, comentário literal ao Gênesis escrito por Agostinho entre 401
e 415: “Ao dizer o apóstolo a carne
cobiça (Gálatas v 17: caro concupiscit aduersus spiritum, et spiritus aduersus carnem) chama carne
ao que opera o espírito segundo a carne, do modo que se diz o ouvido ouve e o
olho vê, pois quem ignora que é muito mais a alma que ouve e vê por meio do
ouvido e dos olhos?” (sic enim dicta est
caro in eo quod secundum ipsam facit anima, cum ait, caro concupiscit; quemadmodum
dictum est, auris audit, et oculus uidet. quis enim nescit quod anima potius et
per aurem audiat et per oculum uideat?).
[vi] A querida e dulcíssima Vovó, Áurea
Remígio Freire (17.02.1942‒16.01.2013 [70]), nos deixou muito cedo, e que falta
sentimos. Era uma presença constante e ajudadora na vida dos netos e do
casal.
[vii] Apenas dez exemplos do recurso retórico
da metáfora utilizado por Agostinho nas Confissões:
(i) I v 5: “ouvidos do meu coração – aures
cordis mei”; (ii) VII vii 11: “tormentos e gemidos do coração em dores de
parto” – tormenta parturientis cordis
mei, gemitus, (iii) “E aí estavam os teus ouvidos (de Deus), sem eu saber –
et ibi erant aures tuae nesciente me”;
(iv) I xvi 25: “torrente dos hábitos humanos – flumen moris humani”, (v) “sob os olhos da lei – in conspectu legum”; (vi) I xiii 21: “(Deus)
luz do meu coração – lumen cordis mei”, (vii) “pão da boca interior
da minha alma – panis oris intus animae
meae”, (viii) “poder fecundante da minha inteligência e do meu pensamento –
uirtus maritans mentem meam et sinum
cogitationis meae”; (ix) I xvi 25:
(hábitos humanos como) “mar profundo e temeroso” – mare magnum et formidulosum, (x) “que somente podem atravessar os
que navegam no lenho (da cruz) – quod uix
transeunt qui lignum conscenderint.
[viii] Confissões
VI iii 3: “sed cum legebat, oculi
ducebantur per paginas et cor intellectum rimabatur, uox autem et lingua
quiescebant”.
Excelente leitura, gostei muito de aprender um pouco a respeito desses grandes filósofos, afinal conhecimento nunca é demais, parabéns por mais esta interessante postagem, abraço.
ResponderExcluirPerfeito! Artigo muito didático e de agradável leitura. De modo impressionante mescla elementos da inquirição humana com a práxis dos laços afetivos cotidianos do histórico familiar. O amigo Rufino tem um dom lindo e peculiar de expressar suas memórias de modo tocante e profundo, nos reportando àquelas experiências e momentos!
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