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Faculdade de Filosofia da USP
ℛenivaldo ℛufino
Hoje é dia de brinde filosófico. E nada melhor que
colocar nessa taça borbulhante um dos grandes conceitos da filosofia, em forma
de pergunta: a verdade é relativa ou absoluta? Antes de transcrever o texto propriamente dito, vale a
pena conhecer o que está por trás da pergunta aparentemente contraditória que o
constitui. Brinde ao meu filho que aniversaria e também a todas e todos que
terão acesso a esse texto.
Encontrava-me
há dois anos em São Paulo, tentando uma vaga no doutorado em filosofia medieval
da USP. Meu primeiro contato na universidade, antes de chegar lá, foi com o
professor Dr. José Carlos Estêvão. O professor Estêvão foi atencioso e gentil comigo, pois em
apenas onze dias respondeu à carta que lhe mandei pedindo informações sobre o
curso, dizendo em uma das linhas: “Normalmente custa um bom tempo afinar um
projeto”. De fato, custou muito tempo, estudo, dedicação, esforço redobrado e
também adaptação ao sistema da instituição, que é diferenciado de tudo que eu
conhecia até então.
Atento às recomendações do orientador, professor Dr.
Moacyr Novaes, somente me candidatei a uma vaga quando ele me deu sinal verde.
Até então, usei todo o tempo de que dispunha para pesquisas tanto na Biblioteca
da USP quanto na Biblioteca dos Agostinianos, em Vila Mariana, além de estudar
disciplinas avulsas e latim, língua do filósofo que escolhi como objeto de
estudo. Com residência temporária em Guarulhos, onde fui recebido como
príncipe, às vezes levava até seis horas para chegar ao destino. Fiquei tão
familiarizado com São Paulo, que já a considerava minha segunda pátria. Além
disso, contei com a qualidade e gratuidade do ensino e incentivos para
alimentação no restaurante da universidade e transporte nas duas cidades. O
ensino é tão qualificado e diferenciado, que um dia de aulas equivalia ao que
seriam muitos dias ou meses do mais rico conteúdo.
Quando o orientador sugeriu que me inscrevesse para a
seleção, fiquei assim como quem sonha. Comecei a pensar o seguinte: como me
preparar? O que devo estudar de filosofia e de francês? Ora, uma vez que fui dispensado da
entrevista e da prova na língua do filósofo que escolhera para pesquisar, pois
já fazia parte do programa da instituição para alunos da casa, só me restava
cair em campo e estudar para vencer os dois desafios. Descobri, então, que não
precisaria estudar, mas depender do saber que acumulara até o momento. Nenhuma
relação de livros foi apresentada, como geralmente ocorre em outras
universidades, e nada em termos de francês, a não ser a ajuda quase inútil de
um dicionário que poderia conduzir à sala onde o exame seria realizado. Deveria
ir com a cara e a coragem, como de fato fui. Ou melhor, com a cara, a coragem e
o arsenal que mantinha depositado nos palácios da memória. Palácios que foram
enriquecidos ainda mais quando li as palavras bondosas escritas em 18.11.2010,
já no último período do curso, que me convenceram de que estava no caminho
certo, apesar do atraso intelectual e da idade: “Estou lendo sua tese. Um
trabalho notável, pela qualidade do texto e pelo desenvolvimento das ideias.
Estou feliz por você, e orgulhoso por receber os imerecidos méritos de
orientador”.
Saindo do rápido desvio acima, a prova de francês foi
sobre Descartes. O texto a ser traduzido não era dele, era sobre seu pensamento.
Assim como fiz na prova
de inglês por ocasião do mestrado na UFPE, fiz agora: li o texto completo, para
tentar entender, e só depois é que comecei a traduzir. E de que constou
a prova de filosofia? Eram cinco questões, para se escolher uma delas e dissertar
durante quatro horas, mesmo tempo da prova de línguas. Fui passando questão por
questão, até que encontrei a pergunta na segunda delas: a verdade é relativa ou
absoluta? Logo pensei diante desse paradoxo: é nessa que vou, pois se trata da
teoria da verdade de Agostinho de Hipona (354-430, 75). Ao invés de quatro
horas, gastei apenas duas horas escrevendo, sem rascunhar e sem rasurar. O
tempo que sobrou, dediquei à cópia que fiz para ficar comigo, o que nem era
preciso, pois todos os documentos seriam devolvidos, o que também diferencia a
USP de muitas outras instituições de ensino superior. Fui aprovado no final do
processo. Tomei conhecimento do resultado um dia antes do meu aniversário de
sessenta anos. Como presente comemorativo, fui brindado pela minha sobrinha
Erimércia e seu esposo Émerson com camarote especial no Teatro Abril, aonde
vimos “O Fantasma da Ópera”. E aí vai, ao pé da letra, o que escrevi naquele inesquecível
dia da prova que me alçou à condição de aluno do doutorado de filosofia da
Universidade de São Paulo.
A VERDADE É RELATIVA OU ABSOLUTA?
A busca encetada pela filosofia, através de nomes que
constituem uma lista que já se estende por mais de dois mil anos de história, é
uma busca que sempre oscila entre extremos, qual o pêndulo de um relógio.
Dentre todos esses nomes, um dos destaques é o de Agostinho de Hipona (354-430)
que, apesar das influências recebidas do neoplatonismo, pensou com seriedade
temas controversos e que oscilavam entre esses extremos, dando aos mesmos uma conotação
e uma direção diferenciada da do neoplatonismo, ajudando, assim, a colocar as
primeiras pedras na construção da filosofia cristã. E um dos temas por ele
desenvolvidos, diz respeito à verdade.
A abordagem sobre a verdade passa necessariamente por outros
prismas, uma vez que é preciso definir, logo de saída, de que tipo de verdade
se trata. Em outras palavras, é imprescindível saber se se fala de uma verdade
ligada ao mundo sensível ou ao mundo inteligível. De que tipo de verdade trata
Agostinho? Por ser um tema tão controvertido e tão polêmico, estaria fadado a
uma aporia? Finalmente, a verdade é relativa ou absoluta, para ele?
Ao principiar a busca, deve-se contemplar, primeiro, o
mundo sensível. Este é um dado imediato e que está bem diante e ao redor de
nós. Ora, o mundo sensível tem uma segurança relativa para garantir um estatuto
permanente à verdade, por conta de sua contingência. Bem no sentido
agostiniano, o mundo é e, ao mesmo tempo, não é. Se a busca pela verdade é a
busca pelo ser e, indo um pouco além, a busca pela felicidade, como encontrar
tudo isso num tipo de realidade que está em constante mudança, numa espécie de
perpétuo fluxo heraclitiano? As verdades encontradas no mundo sensível,
portanto, nem de perto podem ser confundidas com uma possível verdade de
estatuto permanente. A relatividade do mundo confere uma relatividade também
aos seres que dele fazem parte.
De todos os seres que fazem parte do mundo sensível, o
homem é contemplado como o mais excelente ‒ apesar de sua inegável contingência
‒, por ser exatamente ele, o homem, o portador da racionalidade. E é pela
racionalidade que ele pode descobrir essas verdades que podem servir de marcos
na estrada que leva a uma verdade maior e de caráter universal. Onde
procurá-la, então? Estaria ela vinculada ao mundo sensível? Aporeticamente
pode-se responder sim e não. Começando pela negativa, seria impossível
encontrar algum vestígio desse tipo de verdade num mundo que continuamente está
deixando de ser. Por outro lado, pode-se pensar positivamente, pois é neste
mundo sensível, transitório, que se instaura o homem com sua racionalidade. Mas
a verdade seria o homem? Absolutamente, não, mas ela poderia ser procurada pelo
homem no homem.
A fórmula seguida, aqui, é bastante conhecida: saindo da exterioridade,
o homem deve encetar a busca em si mesmo, isto é, na sua interioridade. E esse
movimento revolucionário é tão antigo quanto a história da filosofia.
Entretanto, com conotações bem distintas das que aqui se tratam. Esse movimento
em direção à interioridade é temporal, porém não espacial. E é um movimento na
direção acertada, pois a verdade se encontra no interior do homem (ou no homem
interior). Ao contemplar-se a si mesmo como lugar privilegiado da verdade, o
homem se depara com um paradoxo. Nesse voltar-se para si mesmo ele não
encontra, de imediato, a tão almejada verdade, mas se encontra a si mesmo. Perdido,
antes, na exterioridade e multiplicidade do mundo sensível e contingente, ele
agora se achega a uma possível unidade, quando nesse movimento não espacial se
dirige ao seu próprio interior, ao seu íntimo.
Ao retornar a si mesmo e ao ponto mais extremo de sua
interioridade, em busca da verdade, o homem é colhido por uma surpresa ainda
maior, pois vai descobrir uma profundidade que vai além do seu íntimo. É o
íntimo do íntimo, ao qual ele não tem acesso, pois vai a um ponto inacessível à
sua contingência. É neste exato ponto que ele encontra a verdade absoluta que
buscava. Esta verdade está nele, porém não é ele. Esta verdade resiste à contingência,
pois se instaura além do mundo sensível. Esta verdade é Deus, o Deus cristão,
divindade que se humaniza na encarnação da figura histórica do Jesus de Nazaré.
E isto o neoplatonismo jamais admitiria.
O próximo e último passo é ainda mais paradoxal:
Agostinho agora sai de sua própria interioridade, pois a verdade que ele busca
também está no seu exterior. É o Deus que está no íntimo do íntimo, mas que é
também alteridade, pois como habitaria o não contingente, o ser por excelência,
naquilo que lhe é contrário, ou seja, no contingente e no não ser? E nessa
saída dele mesmo, ele encontra Deus, a verdade absoluta, na revelação cristã.
Obrigado, LUZA, querida irmã, pelo seu comentário elogioso pelo Whatsapp:
ResponderExcluir[14:37, 26/04/2020] É muito profundo do profundo meu mano filósofo!
[14:41, 26/04/2020] Parabéns! Muito esforço, garra e determinação, para conseguir o seu objetivo.
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ResponderExcluirAgradeço pelo seu comentário e elogio, NEUZA CARIRI!
19:49 Boa noite Amigo você me encanta! Parabéns para mim um exemplo de Vida! Sou Fã!
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ResponderExcluirAgradeço, ainda, a meu irmão Regi (REGINALDO FREIRE) pelo seu sucinto e eficaz comentário:
15:37 A verdade é relativa ou absoluta? Mesmo que doa, é necessária.
Quem sou eu pra avaliar um grande texto como este, pois sei que Augustinho foi um pensante e religioso de muita fé cristã. Bom texto amigo
ResponderExcluirObrigado, Gilson!
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ResponderExcluirAgradeço ao querido amigo, professor e mestre ROBERTO SILVA, pelas palavras de apreciação:
Dr. Renivaldo, li as palavras e a prova que você fez na USP. Realmente, que beleza estética ali naquele texto. Aliás, um texto de vida que renova a forma de perceber o mundo e os valores do verdadeiro conhecimento. Fiquei emocionado com o escrito e a interioridade do amigo na narrativa da tarefa. Uma narrativa que me desperta para poder caminhar na trilha da verdade e da ideia. Seduzido e inquieto para vivenciar o assombro das 'pequenas coisas', do imanente, que o digníssimo soube imprimir e brindar para o próximo com altivez. Muito grato na iluminação das palavras que acolho para poder seguir na minha jornada. Cordialmente.
Prezado Renivaldo, obrigado por compartilhar o conhecimento e o momento histórico de sua vida. Parabéns pelo texto e sucesso em seus escritos!
ResponderExcluirForte abraço!
CLÁUDIO, que alegria tê-lo aqui! Agradeço pelo novo impulso que seu comentário me deu! Abraço!
ResponderExcluirSUELY PIMENTEL BRITTO BARROS LIBÓRIO, meus agradecimentos pela leitura do texto e o retorno positivo através do WHATSAPP às 19:38 de HOJE, e fico aqui às ordens para qualquer esclarecimento:
ResponderExcluirMuito profundo.
Meu conhecimento é pequeno para a vasta abordagem que você fez no material.