domingo, 26 de abril de 2020

A VERDADE É RELATIVA OU ABSOLUTA?

Entrada principal da Faculdade de Filosofia da USP

enivaldo ufino
Hoje é dia de brinde filosófico. E nada melhor que colocar nessa taça borbulhante um dos grandes conceitos da filosofia, em forma de pergunta: a verdade é relativa ou absoluta? Antes de transcrever o texto propriamente dito, vale a pena conhecer o que está por trás da pergunta aparentemente contraditória que o constitui. Brinde ao meu filho que aniversaria e também a todas e todos que terão acesso a esse texto.

Encontrava-me há dois anos em São Paulo, tentando uma vaga no doutorado em filosofia medieval da USP. Meu primeiro contato na universidade, antes de chegar lá, foi com o professor Dr. José Carlos Estêvão. O professor Estêvão foi atencioso e gentil comigo, pois em apenas onze dias respondeu à carta que lhe mandei pedindo informações sobre o curso, dizendo em uma das linhas: “Normalmente custa um bom tempo afinar um projeto”. De fato, custou muito tempo, estudo, dedicação, esforço redobrado e também adaptação ao sistema da instituição, que é diferenciado de tudo que eu conhecia até então.
Atento às recomendações do orientador, professor Dr. Moacyr Novaes, somente me candidatei a uma vaga quando ele me deu sinal verde. Até então, usei todo o tempo de que dispunha para pesquisas tanto na Biblioteca da USP quanto na Biblioteca dos Agostinianos, em Vila Mariana, além de estudar disciplinas avulsas e latim, língua do filósofo que escolhi como objeto de estudo. Com residência temporária em Guarulhos, onde fui recebido como príncipe, às vezes levava até seis horas para chegar ao destino. Fiquei tão familiarizado com São Paulo, que já a considerava minha segunda pátria. Além disso, contei com a qualidade e gratuidade do ensino e incentivos para alimentação no restaurante da universidade e transporte nas duas cidades. O ensino é tão qualificado e diferenciado, que um dia de aulas equivalia ao que seriam muitos dias ou meses do mais rico conteúdo.
Quando o orientador sugeriu que me inscrevesse para a seleção, fiquei assim como quem sonha. Comecei a pensar o seguinte: como me preparar? O que devo estudar de filosofia e de francês? Ora, uma vez que fui dispensado da entrevista e da prova na língua do filósofo que escolhera para pesquisar, pois já fazia parte do programa da instituição para alunos da casa, só me restava cair em campo e estudar para vencer os dois desafios. Descobri, então, que não precisaria estudar, mas depender do saber que acumulara até o momento. Nenhuma relação de livros foi apresentada, como geralmente ocorre em outras universidades, e nada em termos de francês, a não ser a ajuda quase inútil de um dicionário que poderia conduzir à sala onde o exame seria realizado. Deveria ir com a cara e a coragem, como de fato fui. Ou melhor, com a cara, a coragem e o arsenal que mantinha depositado nos palácios da memória. Palácios que foram enriquecidos ainda mais quando li as palavras bondosas escritas em 18.11.2010, já no último período do curso, que me convenceram de que estava no caminho certo, apesar do atraso intelectual e da idade: “Estou lendo sua tese. Um trabalho notável, pela qualidade do texto e pelo desenvolvimento das ideias. Estou feliz por você, e orgulhoso por receber os imerecidos méritos de orientador”.
Saindo do rápido desvio acima, a prova de francês foi sobre Descartes. O texto a ser traduzido não era dele, era sobre seu pensamento. Assim como fiz na prova de inglês por ocasião do mestrado na UFPE, fiz agora: li o texto completo, para tentar entender, e só depois é que comecei a traduzir. E de que constou a prova de filosofia? Eram cinco questões, para se escolher uma delas e dissertar durante quatro horas, mesmo tempo da prova de línguas. Fui passando questão por questão, até que encontrei a pergunta na segunda delas: a verdade é relativa ou absoluta? Logo pensei diante desse paradoxo: é nessa que vou, pois se trata da teoria da verdade de Agostinho de Hipona (354-430, 75). Ao invés de quatro horas, gastei apenas duas horas escrevendo, sem rascunhar e sem rasurar. O tempo que sobrou, dediquei à cópia que fiz para ficar comigo, o que nem era preciso, pois todos os documentos seriam devolvidos, o que também diferencia a USP de muitas outras instituições de ensino superior. Fui aprovado no final do processo. Tomei conhecimento do resultado um dia antes do meu aniversário de sessenta anos. Como presente comemorativo, fui brindado pela minha sobrinha Erimércia e seu esposo Émerson com camarote especial no Teatro Abril, aonde vimos “O Fantasma da Ópera”. E aí vai, ao pé da letra, o que escrevi naquele inesquecível dia da prova que me alçou à condição de aluno do doutorado de filosofia da Universidade de São Paulo.  
A VERDADE É RELATIVA OU ABSOLUTA?
A busca encetada pela filosofia, através de nomes que constituem uma lista que já se estende por mais de dois mil anos de história, é uma busca que sempre oscila entre extremos, qual o pêndulo de um relógio. Dentre todos esses nomes, um dos destaques é o de Agostinho de Hipona (354-430) que, apesar das influências recebidas do neoplatonismo, pensou com seriedade temas controversos e que oscilavam entre esses extremos, dando aos mesmos uma conotação e uma direção diferenciada da do neoplatonismo, ajudando, assim, a colocar as primeiras pedras na construção da filosofia cristã. E um dos temas por ele desenvolvidos, diz respeito à verdade.
A abordagem sobre a verdade passa necessariamente por outros prismas, uma vez que é preciso definir, logo de saída, de que tipo de verdade se trata. Em outras palavras, é imprescindível saber se se fala de uma verdade ligada ao mundo sensível ou ao mundo inteligível. De que tipo de verdade trata Agostinho? Por ser um tema tão controvertido e tão polêmico, estaria fadado a uma aporia? Finalmente, a verdade é relativa ou absoluta, para ele?
Ao principiar a busca, deve-se contemplar, primeiro, o mundo sensível. Este é um dado imediato e que está bem diante e ao redor de nós. Ora, o mundo sensível tem uma segurança relativa para garantir um estatuto permanente à verdade, por conta de sua contingência. Bem no sentido agostiniano, o mundo é e, ao mesmo tempo, não é. Se a busca pela verdade é a busca pelo ser e, indo um pouco além, a busca pela felicidade, como encontrar tudo isso num tipo de realidade que está em constante mudança, numa espécie de perpétuo fluxo heraclitiano? As verdades encontradas no mundo sensível, portanto, nem de perto podem ser confundidas com uma possível verdade de estatuto permanente. A relatividade do mundo confere uma relatividade também aos seres que dele fazem parte.
De todos os seres que fazem parte do mundo sensível, o homem é contemplado como o mais excelente ‒ apesar de sua inegável contingência ‒, por ser exatamente ele, o homem, o portador da racionalidade. E é pela racionalidade que ele pode descobrir essas verdades que podem servir de marcos na estrada que leva a uma verdade maior e de caráter universal. Onde procurá-la, então? Estaria ela vinculada ao mundo sensível? Aporeticamente pode-se responder sim e não. Começando pela negativa, seria impossível encontrar algum vestígio desse tipo de verdade num mundo que continuamente está deixando de ser. Por outro lado, pode-se pensar positivamente, pois é neste mundo sensível, transitório, que se instaura o homem com sua racionalidade. Mas a verdade seria o homem? Absolutamente, não, mas ela poderia ser procurada pelo homem no homem.
A fórmula seguida, aqui, é bastante conhecida: saindo da exterioridade, o homem deve encetar a busca em si mesmo, isto é, na sua interioridade. E esse movimento revolucionário é tão antigo quanto a história da filosofia. Entretanto, com conotações bem distintas das que aqui se tratam. Esse movimento em direção à interioridade é temporal, porém não espacial. E é um movimento na direção acertada, pois a verdade se encontra no interior do homem (ou no homem interior). Ao contemplar-se a si mesmo como lugar privilegiado da verdade, o homem se depara com um paradoxo. Nesse voltar-se para si mesmo ele não encontra, de imediato, a tão almejada verdade, mas se encontra a si mesmo. Perdido, antes, na exterioridade e multiplicidade do mundo sensível e contingente, ele agora se achega a uma possível unidade, quando nesse movimento não espacial se dirige ao seu próprio interior, ao seu íntimo.
Ao retornar a si mesmo e ao ponto mais extremo de sua interioridade, em busca da verdade, o homem é colhido por uma surpresa ainda maior, pois vai descobrir uma profundidade que vai além do seu íntimo. É o íntimo do íntimo, ao qual ele não tem acesso, pois vai a um ponto inacessível à sua contingência. É neste exato ponto que ele encontra a verdade absoluta que buscava. Esta verdade está nele, porém não é ele. Esta verdade resiste à contingência, pois se instaura além do mundo sensível. Esta verdade é Deus, o Deus cristão, divindade que se humaniza na encarnação da figura histórica do Jesus de Nazaré. E isto o neoplatonismo jamais admitiria.
O próximo e último passo é ainda mais paradoxal: Agostinho agora sai de sua própria interioridade, pois a verdade que ele busca também está no seu exterior. É o Deus que está no íntimo do íntimo, mas que é também alteridade, pois como habitaria o não contingente, o ser por excelência, naquilo que lhe é contrário, ou seja, no contingente e no não ser? E nessa saída dele mesmo, ele encontra Deus, a verdade absoluta, na revelação cristã.

9 comentários:

  1. Obrigado, LUZA, querida irmã, pelo seu comentário elogioso pelo Whatsapp:

    [14:37, 26/04/2020] É muito profundo do profundo meu mano filósofo!
    [14:41, 26/04/2020] Parabéns! Muito esforço, garra e determinação, para conseguir o seu objetivo.

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  2. WHATSAPP
    Agradeço pelo seu comentário e elogio, NEUZA CARIRI!

    19:49 Boa noite Amigo você me encanta! Parabéns para mim um exemplo de Vida! Sou Fã!

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  3. WHATSAPP
    Agradeço, ainda, a meu irmão Regi (REGINALDO FREIRE) pelo seu sucinto e eficaz comentário:

    15:37 A verdade é relativa ou absoluta? Mesmo que doa, é necessária.

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  4. Quem sou eu pra avaliar um grande texto como este, pois sei que Augustinho foi um pensante e religioso de muita fé cristã. Bom texto amigo

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  5. WHATSAPP

    Agradeço ao querido amigo, professor e mestre ROBERTO SILVA, pelas palavras de apreciação:

    Dr. Renivaldo, li as palavras e a prova que você fez na USP. Realmente, que beleza estética ali naquele texto. Aliás, um texto de vida que renova a forma de perceber o mundo e os valores do verdadeiro conhecimento. Fiquei emocionado com o escrito e a interioridade do amigo na narrativa da tarefa. Uma narrativa que me desperta para poder caminhar na trilha da verdade e da ideia. Seduzido e inquieto para vivenciar o assombro das 'pequenas coisas', do imanente, que o digníssimo soube imprimir e brindar para o próximo com altivez. Muito grato na iluminação das palavras que acolho para poder seguir na minha jornada. Cordialmente.

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  6. Prezado Renivaldo, obrigado por compartilhar o conhecimento e o momento histórico de sua vida. Parabéns pelo texto e sucesso em seus escritos!
    Forte abraço!

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  7. CLÁUDIO, que alegria tê-lo aqui! Agradeço pelo novo impulso que seu comentário me deu! Abraço!

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  8. SUELY PIMENTEL BRITTO BARROS LIBÓRIO, meus agradecimentos pela leitura do texto e o retorno positivo através do WHATSAPP às 19:38 de HOJE, e fico aqui às ordens para qualquer esclarecimento:

    Muito profundo.
    Meu conhecimento é pequeno para a vasta abordagem que você fez no material.

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