sábado, 11 de abril de 2020

ENCANTO E MISTÉRIO DAS GENEALOGIAS


Joran e Rodolfo no umbuzeiro cartão postal e relicário de inscrições na Ringideira, Monteiro, PB
enivaldo ufino

A foto de Joran e Rodolfo trepados no velho umbuzeiro da Ringideira é o exemplo mais eloquente do encanto e mistério das genealogias. Geralmente, árvores são utilizadas como ícones de demonstração do registro das gerações. Outras vezes, essas demonstrações são feitas por diagramas ou figuras similares. Árvore genealógica é uma expressão conhecida que, segundo o dicionário Houaiss, é “a representação gráfica dos antepassados de um indivíduo, que pode incluir também, em cada geração, os parentes colaterais”. O umbuzeiro, por sua vez, é uma árvore alta, nativa das regiões tropicais da América do Sul, com “copa frondosa, folhas pequenas, comestíveis e frutos com polpa doce e aromática, de onde se prepara a umbuzada”. E lá no topo da planta estão os dois corajosos e atrevidos que pertencem a ramificações específicas de árvores genealógicas. Estão numa árvore e pertencem a uma árvore. Será que eles estavam pensando nesses pormenores enquanto se divertiam e pintavam o sete nesse verdadeiro paraíso terrestre? É claro que não, mas é o que menos interessa nesse momento quando nos voltamos para os encantos que estão por trás desse tipo de relato.  
Algumas pessoas acham enfadonho falar ou ler sobre genealogias, mesmo que estejam nelas inseridas. Até mesmo gerações listadas na Bíblia parece ser uma cantilena fastidiosa [1] para muitas delas. Para outras, como é o meu caso, é desafiador, divertido, misterioso e encantador. Nesses relatos das gerações estão ocultas histórias impressionantes. São esses relatos que formam a própria história da humanidade. Livros como a Ilíada e a Odisséia, de Homero, a Escritura hebraica, conhecida como Tanach, e a Escritura cristã, para citar somente esses clássicos, são textos que fizeram e continuam fazendo a imaginação da cultura ocidental, justamente por causa das ricas trajetórias ali contidas.    
Sempre tive apreciação pelos relatos bíblicos que descrevem os ancestrais dos israelitas. Quando lia tais passagens, jamais pulava uma frase que tratasse do assunto. Pelo contrário, lia devagar e com avidez como se estivesse me alimentando da mais saborosa comida. A primeira referência mais extensa se encontra nos trinta e dois versículos do capítulo cinco do livro de Gênesis [2], que você pode acompanhar na nota de final de texto. Vale a pena ler com o vagar necessário que se exige das coisas que alimentam o espírito. De fato, toda boa leitura é uma alimentação para a alma, ou seja, é uma verdadeira terapia.
Genealogia é isso aí e muito mais. Deve-se notar que na relação da nota não constam os nomes de Caim e Abel e sua descendência, que fazem parte do capítulo anterior. Trata-se, portanto, da origem de um indivíduo e também de seus ancestrais e descendentes. Encanto e mistério estão presentes nesses relatos, como ocorre nessa narrativa de Gênesis pertencente à porção mítica da Escritura hebraica. Essa geração de Adão parece longa e, para algumas pessoas, até cansativa. Entretanto, ela é muito sucinta, pois cita apenas alguns nomes masculinos, uma vez que o elemento feminino e outros componentes masculinos estão incluídos no registro geral de “filhos e filhas”. Outro aspecto que chama a atenção é a longevidade dos personagens. Existem diversas teorias sobre o tema, porém não é esse o nosso propósito aqui. Por outro lado, é desafiador, misterioso e encantador debruçar-se sobre os detalhes de uma lista dessas. Cada nome citado encerra em si uma história de vida vivida com sua dinâmica própria e cheia de impressionantes matizes. E, mais ainda, quando pensamos no acréscimo de tantas pessoas descendentes dessa mesma linhagem, entramos numa verdadeira roda viva que nos causa forte impressão. Ora, se a vida ela mesma já se constitui no maior de todos os mistérios, o que dizer com a junção de tantas vidas?
O maior impasse a quem se propõe a fazer um registro desses, é chegar aos ancestrais, sendo que existem dificuldades até na listagem das gerações mais recentes. E são poucas as pessoas interessadas em contribuir com a temática. Afirmo isso porque já lido com essa tarefa há mais de vinte anos. Inclusive, quando estive ocupadíssimo em São Paulo durante mil, novecentos e cinquenta e cinco dias corridos, na elaboração da minha tese de doutoramento, andava sempre anotando esses dados junto aos familiares, quer estivessem próximos, quer distantes. Até mesmo em uma viagem que fiz a Goiânia em 2005, para rever primos e conhecer outros e outras que ainda não conhecia, estive fazendo esses registros e resgates.
Para que se tenha uma pálida ideia de quão trabalhoso é cair na aventura de listar gerações, somente em 2008, em encontro que tive em São Paulo com meu primo legítimo Marçal, é que consegui chegar à bisavó e ao bisavô por parte da minha avó paterna, e mesmo assim com dados incompletos, ou seja, somente os primeiros nomes. O pouco que registrei foi graças a esse primo, que se interessou tanto pelo assunto quanto eu. Dele eu consegui não apenas os primeiros nomes do nosso bisavô e bisavó, mas também o ano da morte do nosso avô Rufino José dos Santos. Ele falou o seguinte a certa altura da conversa: ‒ “Minha mãe dizia que eu nasci no ano em que meu avô morreu”. Sem condições de avançar nessas informações ‒ a não ser quando fizer buscas em igrejas e cartórios, pois já não existem testemunhas orais disponíveis ‒, resolvi romancear o encontro do meu bisavô com minha bisavó, a partir da sucinta informação que me foi repassada. E esse será o tema de uma das próximas publicações: “Antão e Guilhermina ‒ o amor que jamais acaba”. Sendo assim, falar ou escrever sobre pessoas, até mesmo na sequência mítica aqui transcrita, é abordar questões atinentes à genealogia. Cada ponto de um relato desses, por mais insignificante que possa parecer, é fonte riquíssima de informações sobre o ser humano. São trajetórias que carregam verdadeiro tesouro em termos de certos aspectos da vida. E tudo que se refere à vida é extremamente importante e prazeroso.
Voltando à foto acima mais uma vez, na qual aparecem meu filho Joran e meu sobrinho Rodolfo, notamos que apesar de congelada num determinado momento do tempo, ela tem uma dinâmica toda especial, pois continua aberta a questionamentos. Por que estão ali em cima? O que esses dois garotos marotos estão aprontando? Que ocorreu antes de chegarem a essas poderosas e centenárias galhas? De onde vêm e para onde vão? Como vemos, existe toda uma gama de possibilidades por trás dessa cena que faz parte da geração dos dois. Eles são continuidade de seus ancestrais que aí viveram, não em cima desse umbuzeiro, mas na localidade onde a frondosa árvore se situa, justamente em frente à casa onde nasceu seu tio mais velho em 1936, após um parto difícil e doloroso pelo qual passou Maria Laura, avó dos dois.
Eles e nós íamos ao encontro desse tio, agora com residência fixa em Caroalina, pertencente ao município de Sertânia, em Pernambuco, e a alguns quilômetros de distância. Inusitado é que, ao chegarmos, o tio estava trabalhando a alguns quilômetros do povoado, e nós já nos dirigimos para lá a fim de pregar uma peça nele. Joran, gaiato como é, logo criou um novo nome para Rodolfo: a partir dali ele seria Adolpho ‒ assim com ph mesmo e com muita cavernosidade na pronúncia ‒, nosso amigo que nos acompanhava na viagem e que se propôs a dirigir meu carro desde Recife, enquanto o primo vinha “com as viria banida” pilotando sua imensa moto. Ao chegarmos à fazenda, nosso amigo foi logo apresentado com seu nome cavernoso e não houve qualquer reação contrária ao que se planejara. Parece que conseguimos enganar o ilustre personagem. Quase de imediato ele já estava sobre uma potente montaria ‒ como esse rapaz gosta de montar, minha gente! ‒, agora de carne e osso: um belo cavalo devidamente selado. Enquanto a nossa atenção estava voltada para as peripécias do novo cavaleiro, o primo começou a fustigar a fera com vara curta: ‒ “Mas tio Duza, você não reconheceu Rodolfo, filho de tio Reginaldo?” Num passe de mágica, Adolpho se transmudou em Rodolfo. Foi muita anarquia liderada por Joran, rindo com a peça que pregara no tio tão crédulo. Dono do pedaço como sempre foi, não se deu por vencido e retrucou: ‒ “Ele tem os mesmos traços do pai! Parece muito com a família! Eu bem que desconfiei!
Umbuzeiro da Ringideira engalanado para o Carnaval de 2020.

NOTAS


[1] O termo cantilena fastidiosa, ou odiosa, é utilizado por Agostinho de Hipona (354-430, 75 [e aqui vai genealogia]), quando se refere aos estudos em sua época de infância, conforme Confissões I, xiii, 22: “Com efeito, o um e um, dois; dois e dois, quatro, era para mim uma cantilena fastidiosa (odiosa, detestável), e agradabilíssimo o espetáculo da futilidade: o cavalo de madeira cheio de homens armados, o incêndio de Tróia e a sombra de Creusa” (Virgílio, Eneida, II, 772 [iam uero unum et unum duo duo et duo quattuor odiosa cantio mihi erat et dulcissimum spectaculum uanitatis equus ligneus plenus armatis et troiae incendium atque ipsius umbra creusae]).
[2] 1Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez; 2homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. 3Viveu Adão cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e lhe chamou Sete. 4Depois que gerou a Sete, viveu Adão oitocentos anos; e teve filhos e filhas. 5Os dias todos da vida de Adão foram novecentos e trinta anos; e morreu. 6Sete viveu cento e cinco anos, e gerou a Enos. 7Depois que gerou a Enos, viveu Sete oitocentos e sete anos; e teve filhos e filhas. 8Todos os dias de Sete foram novecentos e doze anos; e morreu. 9Enos viveu noventa anos, e gerou a Cainã. 10Depois que gerou a Cainã, viveu Enos oitocentos e quinze anos; e teve filhos e filhas. 11Todos os dias de Enos foram novecentos e cinco anos; e morreu. 12Cainã viveu setenta anos, e gerou a Maalaleel. 13Depois que gerou a Maalaleel, viveu Cainã oitocentos e quarenta anos; e teve filhos e filhas. 14Todos os dias de Cainã foram novecentos e dez anos; e morreu. 15Maalaleel viveu sessenta e cinco anos, e gerou a Jerede. 16Depois que gerou a Jerede, viveu Maalaleel oitocentos e trinta anos; e teve filhos e filhas. 17Todos os dias de Maalaleel foram oitocentos e noventa e cinco anos; e morreu. 18Jerede viveu cento e sessenta e dois anos, e gerou a Enoque. 19Depois que gerou a Enoque, viveu Jerede oitocentos anos; e teve filhos e filhas. 20Todos os dias de Jerede foram novecentos e sessenta e dois anos; e morreu. 21Enoque viveu sessenta e cinco anos, e gerou a Metusalém. 22Andou Enoque com Deus; e, depois que gerou a Metusalém, viveu trezentos anos; e teve filhos e filhas. 23Todos os dias de Enoque foram trezentos e sessenta e cinco anos. 24Andou Enoque com Deus, e já não era, porque Deus o tomou para si. 25Metusalém viveu cento e oitenta e sete anos, e gerou a Lameque. 26Depois que gerou a Lameque, viveu Metusalém setecentos e oitenta e dois anos, e teve filhos e filhas. 27Todos os dias de Metusalém foram novecentos e sessenta e nove anos; e morreu. 28Lameque viveu cento e oitenta e dois anos, e gerou um filho; 29pôs-lhe o nome de Noé, dizendo: Este nos consolará dos nossos trabalhos, e das fadigas de nossas mãos, nesta terra que o Senhor amaldiçoou. 30Depois que gerou a Noé, viveu Lameque quinhentos e noventa e cinco anos; e teve filhos e filhas. 31Todos os dias de Lameque foram setecentos e setenta e sete anos; e morreu. 32Era Noé da idade de quinhentos anos, e gerou a Sem, Cam e Jafé.   




14 comentários:

  1. Muito bom... gosto muito de ler os seus escritos, a história do encontro de Joran e Rodolfo(Adolpho) ficou com um gostinho de continuidade.

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    1. Obrigado pelo seu comentário. Aguarde o romântico encontro de Antão e Guilhermina.

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  2. Que lindo! Que coisa boa rever os nossos familiares. O texto nos conduz ao passado, presente e futuro. Passado, nas saudosas lembranças... presente com o encanto da viagem, chegada, contatos, presença... e futuro nestes dois "garotos marotos" cheios de energia. Grato Renivaldo por compartilhar este texto, que sirva de pretexto para que outros possam alvorar suas genealogias.

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    1. Obrigado, Linaldo, pelas ricas considerações, que me estimulam ainda mais a continuar nesse caminho árduo, porém prazeroso!

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  3. ATENÇÃO PESSOAL!
    Se você tem e-mail do Google, Gmail, seu comentário ficará devidamente identificado. Se não tiver, fica como DESCONHECIDO. Nesse caso, seria ótimo se houvesse a identificação após o comentário. Se você comentar no Whatsapp, eu posso transferir seu comentário. Meus agradecimentos a todos e todas.

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  4. Obrigado, SUELY MATTOS, pelo sua palavra de apreciação no Whatsapp:

    [13:46, 12/04/2020] Que Historia!!!!! Dá vontade de saber mais!!!!
    [13:47, 12/04/2020] Mas me diga, quando foi que despertou em você a "paixão" por genealogia e como?
    [13:49, 12/04/2020] Confesso que só a pouco tempo consegui ler, estudar e escrever sobre a genealogia na Bíblia! !!!! Me intercedo por que fiquei pensando em como esse povo tinha filhos e de idade avançada! !!!!
    [13:49, 12/04/2020] Parabéns!!!!

    É UMA LONGA HISTÓRIA, SUELY!
    Em 1957 saí da vida rural aos 11 anos de idade, justamente daí da Ringideira, onde meu pai possuía terras herdadas do meu avô.
    Ele vendeu tudo, comprou um caminhão misto e fomos morar em Arcoverde e ali fui alfabetizado.
    Sempre retornava ao lugar da minha infância, como faço ainda hoje, para visitar meus parentes.
    A última dessas viagens foi agora no Carnaval 2020, quando me fiz acompanhar de meu filho Joran, minha nora Bela (Isabela) e meu neto Nicolas.
    Foi essa a primeira vez que minha nora e meu neto visitaram a terra dos meus ancestrais por parte do meu pai.
    Então, se isso contar, já são cerca de sessenta anos que busco minhas raízes, minhas origens.
    Entretanto, somente nos últimos vinte anos ou um pouco mais é que comecei a fazer anotações da genealogia, tanto pelo lado materno, dos Freire, como pelo lado paterno, dos Rufino, em duas localidades específicas: Ringideira, pertencente a Monteiro, na Paraíba, e Sertânia, em Pernambuco.
    Tenho tido muito progresso nas minhas pesquisas, mas ainda falta muita coisa, pois entendo que esse é um trabalho que tem começo, mas não tem fim.
    Outra coisa que também conta, é que sempre tive interesse especial pela leitura da Bíblia, inclusive a parte genealógica.
    Espero ter sido útil a você de alguma maneira.

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  5. Agradeço ao colega e professor ROBERTO SILVA, pelas suas palavras de elogio e encorajamento, através do Whatsapp:

    Meu doutor, realmente encantado com o relato. Aliás, uma biografia humana que só o amigo na sua leveza e tirocínio é capaz. Muito feliz e grato. Grande abraço. 👍👏🏼

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  6. Obrigado à querida prima MANINHA, pelo seu comentário no Whatsapp:

    Vc é fantástico!

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  7. Agradeço à professora VITÓRIA RIBAS pela sua palavra de apreciação no Whatsapp:

    Obrigada por compartilhar comigo suas relíquias

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  8. Uma bela história do ontem e do hoje pra nisso bom conhecimento. Parabéns

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  9. LUZA, obrigado pela leitura do texto e apreciação pelo WHATSAPP:

    [12.04.2020, 00:51]: Parabéns!

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  10. Agradeço ao FREI FELIPE, meu parente pela ramificação dos RUFINO, pelo seu comentário através do WHATSAPP, às 10:46 dessa terça 18.08.2020, e também pelo novo desafio que me foi lançado:

    Estou muito contente com as suas conclusões.
    Muito mais contente em saber que as suas aspirações pela nossa genealogia partem de uma experiência com as genealogias bíblicas!
    Primo, tenho outra dúvida, possivelmente você poderá me ajudar...
    Qual é a origem do sobrenome Rufino? Uns dizem que é italiano (corruptela de Ruffinni?) E outros afirmam que é espanhol.
    Qual a sua visão sobre?

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