quarta-feira, 20 de novembro de 2019

CAROALINA EM FESTA

Cena de final de tarde nas proximidades de Caroalina

Renivaldo Rufino
A tarde declinava naquela ambiência de sonho e emoções. Em breve, o Sol desapareceria no horizonte, deixando um rastro cor de sangue, como costuma ocorrer tantas vezes no pôr-do-sol em Caroalina.
Era dia de festa e o vilarejo estava em rebuliço, feito um vulcão em erupção. A multidão enchia ruas e calçadas. E nós três, ainda parentes pela ramificação dos Freire, ocupávamos espaço no meio do burburinho: Mariêta, sua filha Raquel, e eu. Na barraca onde nos encontrávamos reinava completa paz, silêncio e sossego. Parecia outro mundo. A poucos palmos de nós, fazendo parte do mesmo ambiente tranquilo,  percebi a presença de duas pessoas queridas e ilustres: seu João Cabrinha e Rubina, pai e mãe de Mariêta, avô e avó de Raquel. Observei, ainda, que conservavam as mesmas feições e características dos tempos em que os conheci, no início dos anos 1960. Rubina se caracterizava, como sempre, pela sua simpatia e seu jeito amável, doce e afável. Seu João, entre nós três e Rubina, estava entretido comendo alguma coisa, de perfil para mim.
Outros momentos poderiam ter vindo à minha mente naquela ocasião tão cheia de doces recordações. Como, por exemplo, o jeito fino e educado como seu João Cabrinha recebia cada pessoa que frequentava sua aconchegante casa, onde mantinha uma pequena venda de secos e molhados, também conhecida pelo nome de bodega. De todo o sortimento, o que mais me atraía eram duas coisas que eu adorava: bolacha comum e bolacha canela. Eram enormes e muito saborosas. Ainda hoje, na senectude, encontro sabores similares: no Biscoito Água e Sal 3 de Maio, que adquiro no Supermercado Açaí, em Serra Talhada, e também em Campina Grande, que é oriundo de Belém, pequena cidade paraibana que fica a cerca de 90km da Capital da Borborema. A bolacha canela veio a mim assim de repente e surpreendentemente. Em uma de minhas idas ao Derby Center, para encontrar dois colegas, deparei-me com a bolacha canela na Padaria Delicatessen, fundada em 1941. Degustei à vontade e até comprei para presentear, até que a Nutricionista me orientou a parar, por conta da taxa de glicose.
De maneira amorosa, como se fora um verdadeiro pai, seu João tratava o adolescente que eu era como meu filho. Lembro, ainda, a última vez que o vi. Eu retornava de Caroalina com destino a Recife e estava sozinho no carro. Nas imediações da Baixa Funda eu o avistei de longe. De chapéu de palha, por conta da inclemência dos raios solares, olhou em direção ao veículo, quando parei bem próximo para falar com ele pela derradeira vez. Eu nem cheguei a sair do carro. Dirigi-lhe meus mais cordiais cumprimentos e ele me perguntou por que não o visitei. Disse-lhe que não tivera tempo. E ele, com educação e cortesia, dirigiu-se a mim em forma de exclamação: Meu filho! E estas foram as últimas palavras que ouvi da sua boca. Em seguida, despedi-me e saí de estrada a fora com o suave timbre de sua voz ecoando nos meus ouvidos, como continua ecoando até hoje.
Outras lembranças afloram da minha mente. Em uma delas, vejo Mariêta, com seu ar de tranquilidade e igualmente com muita educação e carinho, ao receber os clientes e atendê-los com presteza e atenção. Tantos anos depois, ainda guardo aquela imagem com extrema nitidez. Recordo, também, sua irmã Júlia, de quem ainda conservo uma foto com dedicatória, com o mesmo tipo de herança genética e de boas maneiras que recebeu de seu João e de Rubina. E como esquecer Bonifácio, nos dias de sua adolescência? Ainda mantenho em meus arquivos, aquela foto que tiramos juntos, à sombra de um pé de agalha que ficava nas imediações de sua casa, em que faziam parte da cena, além de nós dois, Bartolomeu, Marina e minha irmã Luza (Luzia). E o que dizer dos banhos domingueiros nas escassas águas do Rio Moxotó? Nesses momentos de folguedo, ainda contávamos com a presença dos ilustres e inesquecíveis Rui e Gonzaga. Uma das coisas que mais me impressionava, entretanto, era que essa trindade santa, formada por Mariêta, Júlia e Bonifácio, filhas e filho de seu João Cabrinha e Rubina, mantinha as mesmas características fisionômicas do pai e da mãe, sendo que, a meu ver, puxando mais para o lado dele.
E o que mais posso retirar dos palácios da minha memória? São tantas e tantas coisas, que o espaço é insuficiente para conter, assim como os recursos oriundos da linguagem são pobres para expressar. Aflora a minha mente um almoço ao qual fomos convidados. O sabor da comida era uma delícia para qualquer paladar, por mais exigente que fosse. E, entre os quitutes, carneiro e galinha guisada, além da sobremesa de doce de mamão digno da mesa dos deuses. Jamais posso esquecer, também, que meu pai e minha mãe um dia convidaram João e Rubina para serem padrinho e madrinha de um de seus filhos. Ao aceitarem, não só demonstraram atenção, carinho e amizade, mas também a prontidão de ficarem unidos pelos laços inquebrantáveis do batismo cristão. Ainda me causa profunda emoção trazer à tela cinematográfica de minha mente, a cena de meu pai conversando, amigável e demoradamente, com seu João Cabrinha e seu Luiz Cabrinha, todos sentados à calçada da bodega de minha predileção. Seu Luiz e dona Nazinha eram padrinho e madrinha de outro filho de Nicoláu Rufino e Maria Freire. Essa relação de respeito mútuo e comprometimento durou enquanto duraram suas vidas.            
Voltemos, agora, ao dia de sonho e emoções na ambiência de harmonia e paz, com Caroalina em festa. E eis que se ouve, de repente, o barulho ensurdecedor de um jatinho supersônico que rasga os céus do povoado e deixa todas as pessoas em alvoroço. Observei que a aeronave voava quase rente ao telhado das casas. Ainda pensei que ela iria cair em meio ao vilarejo, o que seria fatal para tantas pessoas que lá se encontravam. Ao perder altura, chocou-se ao solo e se transformou em uma bola de fogo de proporções gigantescas.
A correria foi geral. Eu me dirigi rapidamente à casa de Zé Izidoro, irmão de Rubina, onde turistas estavam hospedados, mas não entrei. Logo em seguida eu me encaminhei na direção do acidente e fui acompanhado pelas pessoas que estavam na casa. Para nossa surpresa, outro jatinho supersônico rasga os céus, também em voo rasante sobre Caroalina. Tudo indicava que iria cair, mas não caiu. Passou pelo local onde o outro aparelho estava em chamas, lá depois das Casas Velhas, e tomou o rumo da BR, como que para avisar do desastre ocorrido. E nesse ponto, a festa acabou.

Sonho de uma noite de verão
Recife-PE, 11.xi.2019


6 comentários:

  1. Texto maravilhoso. Há nomes tão familiares, presentes em minha casa, qdo criança. Foi uma volta ao passado, o que me deixou mto feliz. Obrigada! Escreva mais.

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    1. Obrigado, querida sobrinha, pelas suas palavras de apreciação!

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  2. Parabéns Renivaldo, pela sua excelente memória de resgatar to.das essas histórias da sua infacia

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    1. Obrigado a você!

      Pena que está sem identificação!
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  3. Que lindo!Tantas recordações boas e saudosas...Parabéns

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    1. Estou agradecido pelas suas palavras!

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