Cena de final de tarde nas proximidades de Caroalina |
Renivaldo Rufino
A tarde declinava naquela ambiência de sonho e
emoções. Em breve, o Sol desapareceria no horizonte, deixando um rastro cor de sangue,
como costuma ocorrer tantas vezes no pôr-do-sol em Caroalina.
Era dia de festa e o vilarejo estava em rebuliço,
feito um vulcão em erupção. A multidão enchia ruas e calçadas. E nós três,
ainda parentes pela ramificação dos Freire, ocupávamos espaço no meio do
burburinho: Mariêta, sua filha Raquel, e eu. Na barraca onde nos encontrávamos
reinava completa paz, silêncio e sossego. Parecia outro mundo. A poucos palmos
de nós, fazendo parte do mesmo ambiente tranquilo, percebi a presença de duas pessoas queridas e
ilustres: seu João Cabrinha e Rubina,
pai e mãe de Mariêta, avô e avó de Raquel. Observei, ainda, que conservavam as
mesmas feições e características dos tempos em que os conheci, no início dos
anos 1960. Rubina se caracterizava, como sempre, pela sua simpatia e seu jeito
amável, doce e afável. Seu João,
entre nós três e Rubina, estava entretido comendo alguma coisa, de perfil para
mim.
Outros momentos poderiam ter vindo à minha mente
naquela ocasião tão cheia de doces recordações. Como, por exemplo, o jeito fino
e educado como seu João Cabrinha
recebia cada pessoa que frequentava sua aconchegante casa, onde mantinha uma pequena
venda de secos e molhados, também conhecida pelo nome de bodega. De todo o sortimento, o que mais me atraía eram duas coisas
que eu adorava: bolacha comum e bolacha canela. Eram enormes e muito saborosas.
Ainda hoje, na senectude, encontro sabores similares: no Biscoito Água e Sal 3
de Maio, que adquiro no Supermercado Açaí, em Serra Talhada, e também em
Campina Grande, que é oriundo de Belém, pequena cidade paraibana que fica a
cerca de 90km da Capital da Borborema. A bolacha canela veio a mim assim de
repente e surpreendentemente. Em uma de minhas idas ao Derby Center, para encontrar dois colegas, deparei-me com a bolacha
canela na Padaria Delicatessen,
fundada em 1941. Degustei à vontade e até comprei para presentear, até que a
Nutricionista me orientou a parar, por conta da taxa de glicose.
De maneira amorosa, como se fora um verdadeiro pai, seu João tratava o adolescente que eu
era como meu filho. Lembro, ainda, a
última vez que o vi. Eu retornava de Caroalina com destino a Recife e estava
sozinho no carro. Nas imediações da Baixa Funda eu o avistei de longe. De
chapéu de palha, por conta da inclemência dos raios solares, olhou em direção
ao veículo, quando parei bem próximo para falar com ele pela derradeira vez. Eu
nem cheguei a sair do carro. Dirigi-lhe meus mais cordiais cumprimentos e ele
me perguntou por que não o visitei. Disse-lhe que não tivera tempo. E ele, com
educação e cortesia, dirigiu-se a mim em forma de exclamação: Meu filho! E estas foram as últimas
palavras que ouvi da sua boca. Em seguida, despedi-me e saí de estrada a fora
com o suave timbre de sua voz ecoando nos meus ouvidos, como continua ecoando
até hoje.
Outras lembranças afloram da minha mente. Em uma
delas, vejo Mariêta, com seu ar de
tranquilidade e igualmente com muita educação e carinho, ao receber os clientes
e atendê-los com presteza e atenção. Tantos anos depois, ainda guardo aquela
imagem com extrema nitidez. Recordo, também, sua irmã Júlia, de quem ainda
conservo uma foto com dedicatória, com o mesmo tipo de herança genética e de
boas maneiras que recebeu de seu João
e de Rubina. E como esquecer Bonifácio, nos dias de sua adolescência? Ainda
mantenho em meus arquivos, aquela foto que tiramos juntos, à sombra de um pé de
agalha que ficava nas imediações de
sua casa, em que faziam parte da cena, além de nós dois, Bartolomeu, Marina e
minha irmã Luza (Luzia). E o que dizer dos banhos domingueiros nas escassas
águas do Rio Moxotó? Nesses momentos de folguedo, ainda contávamos com a
presença dos ilustres e inesquecíveis Rui e Gonzaga. Uma das coisas que mais me
impressionava, entretanto, era que essa trindade santa, formada por Mariêta,
Júlia e Bonifácio, filhas e filho de seu
João Cabrinha e Rubina, mantinha as mesmas características fisionômicas do pai
e da mãe, sendo que, a meu ver, puxando mais para o lado dele.
E o que mais posso retirar dos palácios da minha memória? São tantas e tantas coisas, que o espaço
é insuficiente para conter, assim como os recursos oriundos da linguagem são
pobres para expressar. Aflora a minha mente um almoço ao qual fomos convidados.
O sabor da comida era uma delícia para qualquer paladar, por mais exigente que
fosse. E, entre os quitutes, carneiro e galinha guisada, além da sobremesa de
doce de mamão digno da mesa dos deuses. Jamais posso esquecer, também, que meu
pai e minha mãe um dia convidaram João e Rubina para serem padrinho e madrinha
de um de seus filhos. Ao aceitarem, não só demonstraram atenção, carinho e
amizade, mas também a prontidão de ficarem unidos pelos laços inquebrantáveis
do batismo cristão. Ainda me causa profunda emoção trazer à tela
cinematográfica de minha mente, a cena de meu pai conversando, amigável e
demoradamente, com seu João Cabrinha
e seu Luiz Cabrinha, todos sentados à
calçada da bodega de minha
predileção. Seu Luiz e dona Nazinha
eram padrinho e madrinha de outro filho de Nicoláu Rufino e Maria Freire. Essa
relação de respeito mútuo e comprometimento durou enquanto duraram suas vidas.
Voltemos, agora, ao dia de sonho e emoções na
ambiência de harmonia e paz, com Caroalina em festa. E eis que se ouve, de
repente, o barulho ensurdecedor de um jatinho supersônico que rasga os céus do
povoado e deixa todas as pessoas em alvoroço. Observei que a aeronave voava
quase rente ao telhado das casas. Ainda pensei que ela iria cair em meio ao vilarejo,
o que seria fatal para tantas pessoas que lá se encontravam. Ao perder altura,
chocou-se ao solo e se transformou em uma bola de fogo de proporções
gigantescas.
A correria foi geral. Eu me dirigi rapidamente à
casa de Zé Izidoro, irmão de Rubina, onde turistas estavam hospedados, mas não
entrei. Logo em seguida eu me encaminhei na direção do acidente e fui acompanhado
pelas pessoas que estavam na casa. Para nossa surpresa, outro jatinho
supersônico rasga os céus, também em voo rasante sobre Caroalina. Tudo indicava
que iria cair, mas não caiu. Passou pelo local onde o outro aparelho estava em
chamas, lá depois das Casas Velhas, e tomou o rumo da BR, como que para avisar
do desastre ocorrido. E nesse ponto, a festa acabou.
Sonho de uma noite de verão
Recife-PE, 11.xi.2019