quarta-feira, 20 de novembro de 2019

CAROALINA EM FESTA

Cena de final de tarde nas proximidades de Caroalina

Renivaldo Rufino
A tarde declinava naquela ambiência de sonho e emoções. Em breve, o Sol desapareceria no horizonte, deixando um rastro cor de sangue, como costuma ocorrer tantas vezes no pôr-do-sol em Caroalina.
Era dia de festa e o vilarejo estava em rebuliço, feito um vulcão em erupção. A multidão enchia ruas e calçadas. E nós três, ainda parentes pela ramificação dos Freire, ocupávamos espaço no meio do burburinho: Mariêta, sua filha Raquel, e eu. Na barraca onde nos encontrávamos reinava completa paz, silêncio e sossego. Parecia outro mundo. A poucos palmos de nós, fazendo parte do mesmo ambiente tranquilo,  percebi a presença de duas pessoas queridas e ilustres: seu João Cabrinha e Rubina, pai e mãe de Mariêta, avô e avó de Raquel. Observei, ainda, que conservavam as mesmas feições e características dos tempos em que os conheci, no início dos anos 1960. Rubina se caracterizava, como sempre, pela sua simpatia e seu jeito amável, doce e afável. Seu João, entre nós três e Rubina, estava entretido comendo alguma coisa, de perfil para mim.
Outros momentos poderiam ter vindo à minha mente naquela ocasião tão cheia de doces recordações. Como, por exemplo, o jeito fino e educado como seu João Cabrinha recebia cada pessoa que frequentava sua aconchegante casa, onde mantinha uma pequena venda de secos e molhados, também conhecida pelo nome de bodega. De todo o sortimento, o que mais me atraía eram duas coisas que eu adorava: bolacha comum e bolacha canela. Eram enormes e muito saborosas. Ainda hoje, na senectude, encontro sabores similares: no Biscoito Água e Sal 3 de Maio, que adquiro no Supermercado Açaí, em Serra Talhada, e também em Campina Grande, que é oriundo de Belém, pequena cidade paraibana que fica a cerca de 90km da Capital da Borborema. A bolacha canela veio a mim assim de repente e surpreendentemente. Em uma de minhas idas ao Derby Center, para encontrar dois colegas, deparei-me com a bolacha canela na Padaria Delicatessen, fundada em 1941. Degustei à vontade e até comprei para presentear, até que a Nutricionista me orientou a parar, por conta da taxa de glicose.
De maneira amorosa, como se fora um verdadeiro pai, seu João tratava o adolescente que eu era como meu filho. Lembro, ainda, a última vez que o vi. Eu retornava de Caroalina com destino a Recife e estava sozinho no carro. Nas imediações da Baixa Funda eu o avistei de longe. De chapéu de palha, por conta da inclemência dos raios solares, olhou em direção ao veículo, quando parei bem próximo para falar com ele pela derradeira vez. Eu nem cheguei a sair do carro. Dirigi-lhe meus mais cordiais cumprimentos e ele me perguntou por que não o visitei. Disse-lhe que não tivera tempo. E ele, com educação e cortesia, dirigiu-se a mim em forma de exclamação: Meu filho! E estas foram as últimas palavras que ouvi da sua boca. Em seguida, despedi-me e saí de estrada a fora com o suave timbre de sua voz ecoando nos meus ouvidos, como continua ecoando até hoje.
Outras lembranças afloram da minha mente. Em uma delas, vejo Mariêta, com seu ar de tranquilidade e igualmente com muita educação e carinho, ao receber os clientes e atendê-los com presteza e atenção. Tantos anos depois, ainda guardo aquela imagem com extrema nitidez. Recordo, também, sua irmã Júlia, de quem ainda conservo uma foto com dedicatória, com o mesmo tipo de herança genética e de boas maneiras que recebeu de seu João e de Rubina. E como esquecer Bonifácio, nos dias de sua adolescência? Ainda mantenho em meus arquivos, aquela foto que tiramos juntos, à sombra de um pé de agalha que ficava nas imediações de sua casa, em que faziam parte da cena, além de nós dois, Bartolomeu, Marina e minha irmã Luza (Luzia). E o que dizer dos banhos domingueiros nas escassas águas do Rio Moxotó? Nesses momentos de folguedo, ainda contávamos com a presença dos ilustres e inesquecíveis Rui e Gonzaga. Uma das coisas que mais me impressionava, entretanto, era que essa trindade santa, formada por Mariêta, Júlia e Bonifácio, filhas e filho de seu João Cabrinha e Rubina, mantinha as mesmas características fisionômicas do pai e da mãe, sendo que, a meu ver, puxando mais para o lado dele.
E o que mais posso retirar dos palácios da minha memória? São tantas e tantas coisas, que o espaço é insuficiente para conter, assim como os recursos oriundos da linguagem são pobres para expressar. Aflora a minha mente um almoço ao qual fomos convidados. O sabor da comida era uma delícia para qualquer paladar, por mais exigente que fosse. E, entre os quitutes, carneiro e galinha guisada, além da sobremesa de doce de mamão digno da mesa dos deuses. Jamais posso esquecer, também, que meu pai e minha mãe um dia convidaram João e Rubina para serem padrinho e madrinha de um de seus filhos. Ao aceitarem, não só demonstraram atenção, carinho e amizade, mas também a prontidão de ficarem unidos pelos laços inquebrantáveis do batismo cristão. Ainda me causa profunda emoção trazer à tela cinematográfica de minha mente, a cena de meu pai conversando, amigável e demoradamente, com seu João Cabrinha e seu Luiz Cabrinha, todos sentados à calçada da bodega de minha predileção. Seu Luiz e dona Nazinha eram padrinho e madrinha de outro filho de Nicoláu Rufino e Maria Freire. Essa relação de respeito mútuo e comprometimento durou enquanto duraram suas vidas.            
Voltemos, agora, ao dia de sonho e emoções na ambiência de harmonia e paz, com Caroalina em festa. E eis que se ouve, de repente, o barulho ensurdecedor de um jatinho supersônico que rasga os céus do povoado e deixa todas as pessoas em alvoroço. Observei que a aeronave voava quase rente ao telhado das casas. Ainda pensei que ela iria cair em meio ao vilarejo, o que seria fatal para tantas pessoas que lá se encontravam. Ao perder altura, chocou-se ao solo e se transformou em uma bola de fogo de proporções gigantescas.
A correria foi geral. Eu me dirigi rapidamente à casa de Zé Izidoro, irmão de Rubina, onde turistas estavam hospedados, mas não entrei. Logo em seguida eu me encaminhei na direção do acidente e fui acompanhado pelas pessoas que estavam na casa. Para nossa surpresa, outro jatinho supersônico rasga os céus, também em voo rasante sobre Caroalina. Tudo indicava que iria cair, mas não caiu. Passou pelo local onde o outro aparelho estava em chamas, lá depois das Casas Velhas, e tomou o rumo da BR, como que para avisar do desastre ocorrido. E nesse ponto, a festa acabou.

Sonho de uma noite de verão
Recife-PE, 11.xi.2019


quarta-feira, 6 de novembro de 2019

O TODO HOMOGÊNEO

Joran, Bela e Nicolas

Renivaldo Rufino

Hoje é dia de celebração e de imensa alegria. Hoje é dia de banquete comemorativo em nome do amor. Mas o que é o amor? Será um mero conceito vazio de significado? De fato, o amor como conceito não subsistiria se não fosse personificado como ocorre na expressiva relação Isabela/Joran, Joran/Isabela. O amor só existe porque existem pessoas que se amam.
A pergunta acima – o que é o amor? – foi feita há mais de 2.417 anos, também em um banquete, onde os convivas celebravam o amor através de quitutes e discursos, belos discursos. A certa altura do simpósio um dos presentes diz que “Amar é gerar na Beleza, ou segundo o corpo, ou segundo o espírito”. Diz ainda que “a beleza é a parteira da geração. Por esse motivo, sempre que o poder fecundante se aproxima do que é belo, fica jovial e expansivo no seu regozijo, e concebe e procria”. Para fechar ainda mais o seu discurso, complementa: “Existe uma teoria segundo a qual amar é procurar a outra metade de si mesmo. Porém, o que minha teoria afirma é que amar não será a procura da metade nem do todo, se essa metade e esse todo não forem bons”.
Segundo a narrativa mítica grega, a natureza originária do ser humano formava um todo homogêneo, que foi cindido ao meio e resultou, a partir de então, na busca incessante e desesperada por aquilo que um dia foi esse todo homogêneo. Segundo o autor do discurso, portanto, só existe uma resposta possível à pergunta acima – o que é o amor? –: o amor é a busca do todo homogêneo. A realização plena do amor somente é possível no encontro definitivo com esse todo homogêneo. De fato, se somos seres cindidos, divididos, buscamos sempre a cura dessa cisão. Cura que só ocorrerá através do amor, da beleza e do bem.
Se amar é gerar na beleza e se a beleza é a parteira da geração, resulta daí que é por meio da procriação que os mortais participam da eternidade e da imortalidade, pois o desejo da imortalidade está necessariamente ligado ao bem, visto dirigir-se o Amor para a posse perpétua do bem. A conclusão forçosa desse argumento é que o amor é também o anseio de imortalidade e, portanto, de felicidade. Essa mesma felicidade que pelo Amor circunda e perpassa as vidas de Joran e Isabela.
Chegou agora o momento da solenidade da bênção. Lanço minha tríplice bênção sobre Isabela e Joran, com a imposição de minha mão e das mãos de todos os presentes a esta cerimônia:
* a bênção da unidade na multiplicidade, com respeito, liberdade, ação e paz;
* a bênção da fecundidade no amor, com compreensão, reciprocidade, renovado encantamento e cumplicidade;
* a bênção da longevidade, para que juntos como um todo homogêneo vocês se alegrem com as gerações que procederão dessa criativa e permanente união. 

segunda-feira, 18 de março de 2019

COISAS DE VOZINHA: GALINHA, TEMPERO E FANTASIA

1955, Arcoverde-PE: Auta Aurélia, à direita, e seu vestido grená. Ao lado dela, Luísa Líbia, esposa de Pedro Freire, Maria Laura e, sentado, o patriarca da família Luiz Avelino Freire.




COISAS DE VOZINHA: GALINHA, TEMPERO E FANTASIA

enivaldo ufino

A título de introdução
Contando desde 2018, já distam quase sessenta anos do ocorrido. Quando esse ocorrido fervilha em minha mente, é impossível suster as lágrimas que borbulham dos meus olhos. É sob o peso dessa forte emoção, que narro as coisas de Vozinha no preparo da galinha guisada, com tempero e fantasia. No avivar das lembranças, contei com a inestimável ajuda do meu querido irmão Regi (Reginaldo Freire) e da minha querida irmã Luza (Luzia Maria Freire).
É esta, também, a primeira vez que homenageio a minha velha e querida tia a quem chamávamos carinhosamente de Vozinha. Dona Auta Aurélia era, de fato, uma avó e tanto, mesmo sem ser avó de tantos que a chamavam de avó.
Esta narrativa carrega o mesmo tamanho de simplicidade que ela se dava ao luxo de carregar consigo. O único tempero desta narrativa é a fantasia, ou seja, a falta de tempero. Estou certo de uma coisa: quem dela provar há de aprovar provando aquele sabor das delícias indizíveis.
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 (1) Famosa que só uma estrela de cinema
Lá no vilarejo de Caroalina [1], ela era mais famosa que qualquer estrela de cinema de sua época. Dona Auta Aurélia [2] era a Vozinha do lugar. A criançada a rodeava como os admiradores se acercam de suas estrelas e seus astros prediletos em busca de um autógrafo. O que toda criança queria, no entanto, era muito mais que um rabisco em um pedaço de papel. Elas queriam sua amizade, sua companhia, seu colo amigo e, sobretudo, seu reconhecível e infalível trabalho de advocacia; advocacia sem escritório.
Quer dizer, então, que dona Auta Aurélia era advogada? Bem, digamos que advogada mesmo, de fato e de direito, ela não era, mas sua fama se estendera justamente porque ela representava uma espécie de defensora pública da criançada. A defesa das crianças geralmente ocorria na privacidade de cada família ou de cada mãe de família. Era diante dessas autoridades que a autoridade de Vozinha se manifestava para valer. Após a defesa, geralmente ela mesma dava a sentença, ou seja, fazia as vezes de juíza. Era um papel ambivalente para uma mulher acima de tudo muito corajosa e destemida.
Uma cena que jamais esqueço a respeito do que acima foi dito, apesar de eu mesmo não ter acompanhado por conta da minha idade (eu sou o caçula dos homens), foi o dia em que meu segundo irmão, Raimundo, levado às barras do tribunal por uma trela qualquer – ele era muito treloso; e qual a criança que não é? –, acobertou-se sob as poderosas asas de dona Auta Aurélia contando, ainda, com sua defesa irrefutável. Dona Maria Laura, minha mãe, queria pegar o garoto de jeito a fim de demonstrar o poder de sua célebre e conhecida disciplina. Quem se digladiou não foram mãe e filho, mas as duas irmãs, cada uma mais poderosa que a outra. Fumegantes e com olhos faiscantes que mais pareciam raios prontos a entrar em ação, cada uma argumentava a favor ou contra o pobrezinho do réu. De nada adiantou a voz emocionada de dona Maria Laura e nem a austeridade de sua autoridade, pois a determinado momento ela teve de parar definitivamente diante do argumento final e irretorquível de dona Auta Aurélia:
– “Agora, venha arrancá-lo de debaixo das minhas asas”.
De fato, as asas de Vozinha eram uma verdadeira proteção divina, sobretudo no momento do acerto de contas das mães com as crianças. Se a criança soubesse, poderia recitar ou até cantar aquela marchinha de carnaval: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira!”
(2) O vestido grená
Sempre que viajava a Arcoverde e Sertânia, Vozinha ficava muito elegante com aquele vestido grená que lhe caía tão bem. Foi um presente de dona Tina, mãe de criação da minha cunhada Leosina. Ela se sentia tão bem com aquela vestimenta feita de um tecido conhecido como borracha, que às vezes se punha a cantarolar e dançar. Eu ficava impressionado com aquela cena. As dores da vida eram espantadas com aquele seu sorriso lindo e espontâneo, num corpo de violão com fartos quadris e uma cintura diminuta ou, como cantava Luiz Gonzaga naquela época, “cintura fina, cintura de pilão”.
O vestido grená era muito bem trabalhado, com debruns e brilho especial. Possuía dois elegantes bolsos na parte final e frontal da blusa. Ainda me lembro do quanto ela gostava de colocar suas pequenas mãos ali dentro. Ela fazia isso, chamava qualquer um de nós para perto de si e, como se fosse uma mágica, retirava uma pequena moeda de lá de dentro e nos presenteava. Nosso cofre enriquecia e ela se enriquecia com o nosso amor. Era impossível deixar de amar uma criatura dessas, que mesmo carente como era jamais esquecia a criançada com essas lembrancinhas que faziam um bem danado.   
(3) Pobreza, sofrimento, apatia e solicitude
As posses de Vozinha eram muito poucas. A profissão de costureira era um tanto ingrata naquela região de pouca demanda. Mesmo assim, ela ia vivendo e sofrendo em sua pobreza quase extrema, dependendo inclusive de algum lucro em suas terras. Foi, aliás, por conta da sua profissão de costureira, que meu pai se encontrou pela primeira vez com minha mãe, de onde nasceu o romance que os uniu para sempre. Dona Auta Aurélia costurava, na ocasião, as roupas de luto de Nicoláu Rufino, que perdera seu pai recentemente.
Foi a coragem que levou dona Auta Aurélia até Caroalina. Viúva, casou-se em segundas núpcias com um tio meu bem mais jovem do que ela. Seu único filho foi herança do primeiro marido. Do segundo, ela recebeu muitas alegrias, mas também muita tristeza e sofrimento, sobretudo quando se deixou dominar pelo ciúme. Dá para imaginar o clima que era conviver numa relação dessas. Ciúme é como uma planta daninha que faz o amor e suas delícias murcharem irreversivelmente. O amor, que é pura espontaneidade, jamais deve ser algemado por sentimentos mesquinhos que tentam aprisioná-lo. A marca característica do amor é que ele deve ser isento de prisões. O casal vivia essa guerra silenciosa, que muitas vezes deixava suas labaredas à vista.
Mesmo no sofrimento, ela era uma pessoa amável, afável e com profunda empatia pelo próximo, sobretudo pelas crianças das quais era protetora. O resultado de tudo isso era uma convivência pacífica com os vizinhos e os moradores da vila, que a respeitavam bastante. Hoje, ela poderia ser comparada a uma Zilda Arns (1934-2010).
Se ela era tão pródiga com as crianças, estas não deixavam por menos. Meu irmão lembrou-se de um fato interessante e me repassou por telefone. Ela também dependia, para o seu sustento, de alguns caprinos, que eram mantidos em uma região conhecida como Cuxi. Quando esses animais eram soltos e chegavam a Caroalina, cada dono cuidava do que era seu, mas Vozinha não tinha um vaqueiro para ajudá-la a cuidar da sua criação. E ela nem precisaria de um vaqueiro, pois dispunha de muitos. Os garotos maiores cuidavam dos animais como se fossem seus. Em compensação, ela se reunia com eles, à noite, para lhes contar histórias fantásticas. Ela como que enfeitiçava as crianças com o encanto desses contos. Lembro-me do que foi dito por Neide Medeiros Santos em seu texto, “Reminiscências de leituras”: 

Minhas primeiras lembranças literárias remetem para as histórias de Trancoso. Eram histórias contadas por Chicuta, uma velhinha que, como Totônia de Zé Lins, sabia dar um tom nordestino aos contos de princesas e príncipes que habitavam o mundo encantado do reino do faz-de-conta. Eu ouvia embevecida a "História da Princesa da Pedra-Fina" e da "Donzela Teodora"; só muitos anos depois soube que estas histórias integravam o acervo da literatura popular em verso (cordel).
Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann (1776-1822, 46) é considerado o pai da literatura fantástica. Escritor, novelista e compositor, ele é o autor dos “Contos de Hoffmann”. Algo inusitado sobre este autor é que por conta de sua admiração por Mozart, ele substituiu o seu terceiro nome, Wilhelm, por Amadeus.
Além de excelente anfitriã, Vozinha também era uma pessoa muito solícita. É impossível esquecer o que ouvi dos seus próprios lábios acerca dessa sua atitude de ajudar e preocupar-se com os outros. Ela e algumas senhoras devotas de Santa Quitéria, padroeira do povoado, resolveram formar uma pequena caravana para recepcionar o padre, Monsenhor Urbano, que viria celebrar missa. Saíram estrada a fora, a pé, e em determinado momento o veículo que conduzia o padre se aproximou. Elas acenaram para que o carro parasse, mas não foram atendidas. Aquela falta de cortesia as deixou profundamente decepcionadas. Dona Auta Aurélia não teve outra saída: debandou para o protestantismo e nunca mais voltou à prática do catolicismo. Mas também nunca foi completamente evangélica.
(4) Riqueza na pobreza
Certo dia Vozinha foi surpreendida com um rico presente do seu irmão mais novo, meu tio Pedro Freire. Ele adquiriu e lhe repassou um enorme terreno, que ia da vila até muitos quilômetros caatinga adentro. Era uma riqueza na pobreza que continuava pobre. Riqueza, mesmo, era o seu caráter e honradez, e sua coragem para lutar contra as intempéries da vida.
Dona Auta Aurélia era uma excelente anfitriã. Pouco importa a simplicidade da casa, dos pouquíssimos e essenciais móveis, de aparatos outros e quaisquer que sejam; sua fidalguia ao receber alguém era notável. Ela era um amor e um doce de pessoa com sua conhecida afabilidade.
Como se não bastasse tanto amor, um dia ela presenteou sua irmã e minha mãe Maria Laura com a parte mais nobre do terreno. Mesmo sem passar escritura, ela doou as terras que iam do vilarejo até às margens do Rio Moxotó. Era um pequeno trecho, porém muito privilegiado. Assim que teve condições, meu pai logo construiu uma casa que, com o terreno, ficou como herança para seus filhos e sua filha. No dia 1º de janeiro de 1965 fomos morar na casa nova, construída também com a ajuda dos meus irmãos. Minha alegria foi tamanha, que fiz uma pequena crônica para celebrar e que se mantém comigo até hoje.
Certa vez eu a visitei, lá na vila mesmo, e senti meu coração doer com tanta pobreza que a circundava. Uma casinha abaixo do nível da simplicidade e, ainda por cima, alugada. Que condições teria ela, pensei, para pagar um aluguel, qualquer que fosse o valor? Lamentava ainda mais, pois na época eu não dispunha de recursos para ajudá-la.
(5) Delícia digna da mesa dos deuses
O costumeiro prazer de dona Auta Aurélia ao receber alguém ficou ainda mais patente quando ela escolheu construir uma pequena casa no topo do terreno, há cerca de um quilômetro de Caroalina e com vista privilegiada do vilarejo. E, entre a casa e a vila, a imponência do Rio Moxotó, que também tinha sua trajetória de sofrimento por causa da escassez de água. Em caso de enchente, era impossível comunicação entre as duas partes por causa da inundação. Mas o rio jamais foi perene, justamente por conta da seca que era constante.
Naqueles tempos eu devia estar com 17, 18 anos de idade. Findava o ginásio no “Carlos Rios” em Arcoverde, mas sentia grande prazer ao visitar Caroalina, meu torrão natal, terra que me viu nascer. A alegria aumentava ainda mais ao chegar à vila e encontrar pessoas tão queridas, como “seu” João Cabrinha, sua esposa Rubina, suas filhas Júlia e Marieta e seu filho Bonifácio e, ainda, o querido amigo Bartolomeu, filho de “seu” Sibas e dona Lourdes, Marina, Eralda, Neuza e Zélia Camelo, entre tantos outros. De alguma maneira, cheguei a ensaiar namoricos que duravam poucos dias, inclusive com Neuza Camelo.
Participei, ainda, uma única vez, de um baile de carnaval que me deixou marcas profundas. Jamais retornei àquele salão de danças, pois a baixaria era muito grande para o meu gosto. Sem eu saber, alguém lá dentro chegou a criar uma situação embaraçosa, pois movido de inveja ao me ver conversando com uma moça com a qual eu namoraria, chamou um rapaz, perguntou se ele estava armado e mandou que fosse retirar a moça para dançar. Deixei que ela fosse dançar sem maiores problemas, pois estava inocente da situação inusitada que se formava ao meu derredor. Quando meu irmão mais velho me revelou o fato no dia seguinte, fiz como costumo fazer: deixei de frequentar o ambiente para sempre. Ora, concluí que aquilo nada me acrescentava, logo, não me faria falta alguma, como de fato não me fez.
Uma das razões que me levavam de Arcoverde a Caroalina era justamente a presença de Vozinha. Visitá-la era um prazer, mesmo quando foi morar do outro lado do Rio Moxotó. Que conversa prazerosa nos ocupava cada vez. Quantos assuntos tocantes e que me cativavam o coração. Como me sentia feliz quando, algumas vezes, reclinava minha cabeça no seu colo e recebia gostosos “cafunés”, regados aos contos que me contava e que eu adorava tanto. A magia de suas unhas sobre minha cabeça me faziam praticamente perder a cabeça de tanto prazer. Gostava de estar perto dela e sentir seu cheiro, que não era cheiro de perfume, mas o cheiro natural. A falta de perfume não fazia nenhuma falta, pois ela só exalava odores agradáveis. E assim era cada vez que visitava o lugarejo. 
Ao chegar a Caroalina dessa vez, tive de me esforçar bastante para vencer o percurso que levava da vila até à casa de dona Auta Aurélia, no topo do outro lado do rio. Segui pelo nosso terreno até a beira do rio e de lá fui direto pelo atalho das várzeas, ao invés de tomar o caminho mais distante. O sol já estava suficientemente escaldante, para ela misturar a alegria de me receber com o prazer de me oferecer um copo de água do pote. Como era gostosa aquela água. Quantos abraços, quantos beijos, quanta alegria ao me ver em sua humilde casa.
Quase de imediato, Vozinha demonstrou certa preocupação, pois queria que eu almoçasse com ela e, àquela altura, ainda não preparara nada. E se desmanchou em desculpas e explicações: já sabia qual galinha matar, mas infelizmente não dispunha de tempero algum. Mesmo assim, garantiu, iria ver o que poderia fazer em situação tão embaraçosa. São coisas de mulher: criatividade quando não havia uma folha de coentro e nem cebolinho, quando não havia um tomate ou um pouco de óleo, cominho e outros temperos imprescindíveis. Essa ocorrência me faz lembrar uma cena do filme “Pão, amor e fantasia”, estrelado por Gina Lollobrigida e Vittorio De Sica. O marechal Carotenuto, papel vivido por De Sica, passeava pelas ruas da pequena cidade de Sagliena, no interior da Itália, quando se depara com um pobre homem sentado na calçada. O diálogo é rápido, cortês e cheio de nuances de sabedoria. – Bom dia, Marechal!Bom domingo! O que está comendo?Pão. – O que coloca dentro? Fantasia, Marechal!Bom apetite. – Obrigado!
E lá se foi dona Auta Aurélia matar a galinha e usar de sua ciência de mulher no preparo da mesma, para nos servir durante o almoço. Eram coisas de mulher. Talvez se lhe perguntasse que tempero colocaria na galinha com aquela completa falta de tempero, ela me respondesse: – “Eu colocarei fantasia como tempero, meu filho”. Eu pude perceber que a simplicidade do feijão denunciava toda essa falta de tempero que tanto a preocupava.
De repente, o cheiro do cozimento da galinha começou a subir, tomar conta da casa e nos deleitar. Almoço pronto, fomos à mesa e eu fiquei surpreendido com o resultado do milagre que ela operara: o almoço estava perfeito, a galinha gostosíssima, como se ela tivesse usado tempero sem fantasia para guisar a carne. Fiquei feliz e bem alimentado, mais uma vez, e cativado pelo amor, atenção, carinho e cuidado de dona Auta Aurélia. E passamos o resto da tarde em uma alegre conversa, atualizando todos os assuntos. Só retornei a Caroalina no final da tarde, com o sol bem mais ameno.  
A título de conclusão
Essas recordações doem, mas também alegram. Aquela alegria de sentir o que eu sentia na época, até mesmo o prazeroso cheiro da comida, e que me acompanha até os dias de hoje. A lembrança de trazer novamente à memória todas aquelas pessoas tão queridas com as quais me encontrava. Prazer redobrado de saber que hoje ainda compartilho com algumas delas, até mesmo essas pequenas produções de minha autoria, inclusive com alguns de seus descendentes.
Já relembrar dona Auta Aurélia e esses feitos maravilhosos é algo tão forte e tão salutar, que dá vontade de retornar sempre a esses saudáveis pensamentos. Ela, aquela mulher que nasceu pobre, viveu pobre e morreu pobre, mas transbordou toda riqueza através de sua trajetória. Ela era tão simples e, ao mesmo tempo, tão complexa e tão sábia. Sua humanidade empolgava e deleitava minha humanidade. Seu simples modo de ser me inspirava e ainda me inspira coisas grandiosas. Por isso, meu coração não cessa de cantar profunda gratidão por tudo que ela continua representando em minha vida.



[1] Caroalina é um dos distritos que formam o município de Sertânia, no sertão de Pernambuco. Os demais são, pela ordem, Albuquerque Né, Algodões, Henrique Dias e Rio da Barra. O nome Caroalina provém do caroá, Neoglaziovia variegata, planta nativa do Nordeste do Brasil, que era beneficiada na fábrica que existia no lugarejo para extrair com maquinaria própria a fibra das folhas dessa planta, vendida nas grandes cidades para a produção de cordas, tecido grosseiro e papel. 
[2] Auta Aurélia de Santana Freire era filha de Josefa de Santana Freire e Luiz Avelino Freire. Infelizmente, não guardo nenhum outro dado sobre sua vida. Seus últimos dias ela os passou em um abrigo, em Sertânia, próximo ao Cemitério da cidade. De lá, ela só saiu para o cemitério. Eu era, na época, pastor da Primeira Igreja Batista de Beberibe, em Recife, e funcionário do Banco do Nordeste.

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