segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

PAI HOMENAGEADO E COMPARTILHADO AOS 115 ANOS DO NASCIMENTO

 

1958 ‒ Arcoverde, PE: Nicoláu (53) ao lado de Maria (47), que se recupera de delicada cirurgia de vesícula, sob os cuidados do competente doutor Jennecy Ramos.


PAI HOMENAGEADO E COMPARTILHADO AOS 115 ANOS DO NASCIMENTO

Reginaldo Freire [1]

Nicolau Rufino dos Santos (06/12/1906-04/02/1966) comemoraria nesse encontro de dia e mês (06/12/2021 [2]), exatamente 115 anos. Prematuramente, o mal que o perseguia desde cedo terminou descartando da vida uma peça que fez muita falta à família. Estava com apenas 59 anos quando se afastou do seu posto, tão bem administrado enquanto viveu. 

Em vida, minha admiração por ele e pelas façanhas que passava à família, sempre no horário das ceias, era como um jornal de televisão, exceto pelas qualidades inigualáveis das narrações. Ao vivo, era uma repetição de caráter que mudava apenas no enredo dos casos. O lado pessoal, nem o tempo conseguiu desgastar uma vírgula sequer das suas confirmações. Com o tempo foi descoberto o seu conhecimento em áreas conquistadas. Era, na verdade, um autodidata, aprovado nas mais estranhas missões ocupadas.

Fiquei devendo o último abraço [3], pois partiu para sua eterna morada quando eu já havia partido há um ano para São Paulo, na busca de melhores ofertas de trabalho. A falta que ele fez só não foi maior porque não me passava pela cabeça que só o tempo traria a resposta. A resposta se encontra em parte das qualidades que herdamos dele. Concordâncias e discordâncias sempre tecendo médias, para que no final das equações saíssemos de braços dados confirmando um jeito especial de uma vitória duradora.

Para finalizar o que imagino sem fim, parabenizá-lo pelos 115 anos entre vida e morte, não faço ideia que expressões usar para preencher tão nobre sentimento. Pai, ainda estamos juntos reverenciando o espaço que poderia se dizer vazio, não fosse a união das lembranças em comunhão com a saudade. De todos, para um herói que ainda faz muita falta.

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Renivaldo Rufino

texto corrido [4] numa mistura de estilo do latim antigo e de josé saramago [5]

se como leandro karnal [6] eu fosse escrever para homenagear reclamar e agradecer a meu pai e minha mãe parte seria bem diferente do texto dele pois nasci e me criei em berço humilde em pleno sertão sem dias especiais nem mesmo aniversários dia de pai ou dia de mãe natal ou o que quer que seja aliás a bem da verdade só se tinha mesmo o mês de meu padim pade ciço que um dia foi comemorado pelo meu pai como quitação de uma promessa em uma viagem inesquecível à cidade de juazeiro justamente no misto em uma aventura que até hoje permanece em nossas mentes sobretudo pelo fato de que ele adoeceu quando lá estávamos e quando eu também tive a minha primeira experiência de petição à divindade ao avistar o nome deus em letras maiúsculas no cimo de uma igreja católica por outro lado e mesmo sem contar com tantos dias especiais tivemos um pai e u'a mãe que foram símbolos marcantes em nossa vida que deram tudo de si para sustentar com dignidade cinco filhos e uma única filha num grande conjunto formado de oito pessoas em que quatro deles os três últimos filhos e a filha só tiveram acesso aos estudos tardiamente mas apenas três deles e ela pois os outros dois e o pai já foram dar duro em cima de um caminhão misto rodando para lá e para cá a fim de angariar sustento para oito bocas enquanto a mãe também dava duro para manter a casa em ordem filhos e filha que também foram orientados por uma rígida disciplina coincidentemente mais dura da parte dela do que da parte dele que tiveram uma adolescência tranquila e sem traumas marcantes e cuja única grande herança que me sobrou a mim pelo menos foi um pequeno arremedo ou apito de madeira para chamar nambu na caatinga um desgastado exemplar do novo testamento e o saber de uma formação que foi apenas até ao final do curso ginasial na linda e pequena cidade de arcoverde pe mas um pai e u'a mãe cuja memória é relembrada com redobrado carinho devoção e profundo agradecimento por tudo de positivo e construtivo que legaram a essas seis vidas [7] que ainda hoje vivem lutando pela vida com muita garra determinação e alegria o mais velho com 85 e a mais nova com 73 anos de idade



[1] Esta é a segunda vez que compartilho este espaço do Blog com meu irmão Reginaldo Freire.

[2] As publicações no Blog saem aos primeiros domingos de cada mês, exceto esta em homenagem ao aniversário de nascimento de meu pai.

[3] Quando Nicoláu morreu, na casa de Raimundo, em Sertânia, Geraldo e Reginaldo já se encontravam tentando a vida em São Paulo.

[4] A cadência da leitura indicará, automaticamente, os locais dos sinais gráficos que estão ausentes. 

[5] Este texto foi publicado no meu Whatsapp em 08/08/2021, por ocasião do Dia dos Pais, porém não nesse formato. Quem já leu José Saramago conhece muito bem o seu estilo diferenciado. Quanto ao latim antigo, os caracteres eram todos em minúsculas, sem pontuações e sem sinais gráficos.

[6] Leandro Karnal escreveu um texto intitulado: “Todos os meus pais”. Foi a partir dele que me inspirei e produzi este artigo.

[7] Eis a relação completa da descendência imediata de Nicoláu Rufino e Maria Freire: (1) José Rufino Freire, ou Duza [20/09/1936], (2) Raimundo Rufino Freire, ou Mundinho [21/05/1938], (3) Geraldo Rufino Freire, ou Dadinho [06/07/1941], (4) Sebastião Reginaldo Rufino Freire, ou, originalmente, Reja, e Regi nos dias atuais [03/03/1943], (5) José Renivaldo Rufino, ou, originalmente, Rena, e, mais recentemente, Reni [29/03/1946] e (6) Luzia Maria Freire, ou Luza [14/11/1948]. Se Nicoláu viveu apenas 59 anos, Maria ultrapassou os 81. Os dois primeiros filhos também já atingiram e ultrapassaram os 81 anos.

domingo, 7 de novembro de 2021

ENCANTADORES ENCANTOS E DESENCANTOS NA TRAJETÓRIA DE LIA

 


FOTO 1 1958, Arcoverde, PE ‒ Maria Laura Freire Santos (10/11/1912‒25/07/1994, 81), Lia, aos 46 anos, com vestido costurado por Elizabete, que se tornou mãe de sua primeira e querida neta, Socorro, a quem ela mesma criou.


ESPAÇO COMPARTILHADO

enivaldo ufino

Minhas publicações neste Blog só se tornaram possíveis graças à ajuda do querido amigo e companheiro Marcos Monteiro. Grande incentivador, ele sempre esteve e continua presente em minha vida. Aproveito o momento para agradecer publicamente sua significativa colaboração.

Quem primeiro compartilhou este espaço comigo foi meu filho Joran Diniz Rufino, com o excelente artigo sobre seu filho Nicolas, dia 02/01/2021: “O menino, o mar e a divindade”. Hoje, este espaço se abre para dar acolhida a um texto produzido em 2012 pelo meu irmão Reginaldo Freire, por ocasião do centenário de nascimento de nossa mãe. Assim como fiz surpresa a Joran, assim também farei com Regi. Ao rever, revisar e arrumar o texto tanto tempo depois, eis que me veio à mente o título que trata dos encantadores encantos e desencantos na vida de Lia, apelido afetivo pelo qual Maria Laura era conhecida. Depois surgiu uma pergunta: e pode haver encantadores encantos nos desencantos? E logo veio a resposta um tanto simplista: os desencantos também têm seus encantos, talvez não tanto quanto os encantos do encanto, mas têm. Lia, ou Maria, talvez tenha tido mais desencantos que encantos em sua humilde trajetória de oitenta e um anos de vida. Isso, porém, não lhe tirou a alegria de viver, mesmo em situações extremas. Já na adolescência, lá do alto do sítio da Penha ‒ que pertencia a seu irmão Antônio Freire ‒, próximo à cidade de Sertânia, PE, o trinado de sua alegre e afinada voz era ouvido à distância. Assim como as alegres notas do canto, jamais ouvi uma nota de desencanto saída de sua boca. A situação poderia estar no limite, mas ela sempre ultrapassava esses limites com sua positiva visão da vida, e com sua postura de mulher guerreira ao lado do esposo e companheiro. Vamos, agora, às gratas recordações que estão nas lembranças do quarto e querido filho de Lia.     

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FOTO 2 2005 ‒ Reginaldo e Renivaldo em São Paulo, durante os dias em que este esteve envolvido com o doutorado de filosofia na USP.

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ENCANTADORES ENCANTOS E DESENCANTOS NA TRAJETÓRIA DE LIA [i]

Reginaldo Freire

Sítio Algodões [ii], Sertânia, PE, 10/11/1912. Guarulhos, SP, 10/11/2012. Se estivesse viva, estaria nossa mãe completando 100 anos nesta data.

Lia perdeu a mãe com apenas sete anos de idade. Tinha muitos lugares onde ficar. Todo o carinho que lhe foi podado na infância com a morte da mãe, teve de castigos em cada passo da trajetória, passando pelas casas dos seus irmãos. Ficamos sabendo, por ela mesma, que a menina Maria era tratada pelo afetuoso apelido de Lia. Sete anos, tão criança ainda, tão dependente do cuidado e carinho dos pais. Nessa idade, o filho está tão ligado à mãe, que no estudo dos sentimentos não tem como conjugar este verbo. No caso de Lia, era tudo separação, perda e dor. Debulhando as pegadas nos passos da sua caminhada, ficamos sabendo que muitas pedras caíram no seu caminho. Quem a maltratou, quem foi indiferente e quem lhe deu carinho. Ficamos sabendo disso tudo, contado por ela mesma.

Tomamos conhecimento de praticamente tudo sobre a vida e os sofrimentos da menina Lia. Ela mesma gostava de contar aos filhos e à filha sobre o sofrimento que passou ao longo da infância, assim como quem recebe uma dívida em longas prestações. Tinha que acordar muito cedo. Se passasse da hora, as chicotadas eram seu despertador. Criança gosta de dormir um pouco mais, exceto nas casas de parentes, principalmente quando perde a mãe. Imaginemos quão difícil era, pois em cada casa que passasse teria de se enquadrar ao sistema da casa. Para uma criança é muito complicado esse ritmo de vida. À medida que os anos iam passando, sua independência ia chegando. Sofreu muito com o excesso de ciúmes, sobretudo na passagem crítica da adolescência.

Sua escolaridade era praticamente zero [iii]. Ela nada nos falou sobre isso. Fico a pensar que ela pulava essa parte dos estudos devido à precariedade da vida que levava.

Bateu em muitas portas, viu muitas caras, teve pouca atenção, pouco carinho, muita crítica e muita cobrança. Porém, não desistiu, acreditou, até mesmo por falta de opção. Ela não teve sequer o direito de cair. Tinha que permanecer em pé e ser obediente à severa vigilância.

Como uma espécie de doutora sem doutorado ou psicoterapeuta sem diploma, ela tinha uma postura extremamente humana e solícita diante dos que a buscavam. Antes de qualquer remédio para o doente, uma boa conversa era repassada para ele. No raio das suas possibilidades, não media esforços e sempre conquistava novas vitórias.

Certa vez, pediu emprego para pai ao então governador de Pernambuco, dr. Etelvino Lins de Albuquerque. Tudo graças à amizade que fez com a família Lins de Albuquerque nos tempos da sua juventude em Sertânia. Seu pedido foi prontamente atendido: pai conseguiu uma vaga como fiscal do DNER, num trecho de estrada que estava em construção em Santa Maria, nas proximidades de Rio da Barra.

Bem antes disso, quando ainda só tinham dois filhos, José e Raimundo, evitou que pai voltasse da procura de emprego que fazia em Caroalina (vilarejo que pertence ao município de Sertânia). Por mera intuição, procurou pai, conversaram e resolveram ficar por lá. Tiveram muito sucesso (durante os dez anos que passaram por lá), geraram mais três filhos e uma filha, e foi aquela a melhor época de suas vidas.

Socialmente, representou muito bem o seu esposo, companheiro e amigo. Nessa época, já praticava seus conhecimentos junto às pessoas necessitadas. Um desses exemplos é o de uma pessoa que foi esfaqueada e ela cuidou do ferimento a tempo. Ela jamais levou um filho ao médico. Tratava tudo em casa. Quando não encontrava o remédio adequado nas bodegas da vila, usava ervas que existiam em abundância no mato.

Quando estava feliz, cantava sua alegria de viver como se fora um pássaro. Sua inspiração de vida no lar era a família muito bem constituída. Carinho e amor eram a base do cotidiano do casal e da família. Sentimos muito bem essa realidade nos dez anos que moramos no vilarejo de Caroalina, de 1939 a 1949. Àquela época nós vivemos num verdadeiro paraíso.

De Caroalina, o casal se mudou para o sítio da Ringideira, a 6 km de Monteiro, PB, onde deu tudo de si para levar avante o projeto com a terra e com as cerca de cinquenta criações que levara de Caroalina. Sem dinheiro, com seis filhos pequenos para criar, ela e ele foram testados na capacidade de sobrevivência em um ano extremamente seco. Somente hoje é que tenho uma pequena noção do sacrifício que os dois fizeram.

Na contribuição que dava à família, além dos afazeres do lar, contou muito sua arte de costureira. Costurava não apenas para casa, mas para fora, como se dizia na região, chegando a fazer alguns clientes. Além disso, foi companheira constante e atuante nas ideias que pai arquitetava para sair das crises. Na Ringideira, perdeu todas as mordomias que tinha em Caroalina. Teve que enfrentar todos os afazeres de casa, inclusive uma família numerosa, com alguns que ainda eram crianças. Foi firme nessa caminhada, jamais reclamou e deu o recado certinho até o fim da crise. Tinha um belo criatório de galinhas, com uma boa produção de ovos, e com uma boa quantidade de aves para abater, o que ajudava muito na manutenção da casa. Cozinhava muito bem, com um bom tempero, e fazia um bolo que ainda hoje é lembrado (e copiado): o inimitável chapéudecouro (também conhecido como bolo de caco). A sopa de feijão também não deixava nada a desejar [iv].

O primeiro ano na Ringideira foi de seca e perda total na agricultura, o que testou profundamente a resistência do casal. No cântico da minha mãe, era fácil entender a tristeza que passava. Nessa época, ela tinha por volta dos trinta e oito anos. Os cabelos negros e ondulados destacavam a beleza do seu rosto e dos olhos ainda com forte brilho. Chorava fácil, o que a enchia de ternura e sentimentos sem fim.

Hoje, sei que lá onde ela estiver não precisa mais de elogios. Como representante direto que sou, posso dizer que tudo serve para preencher o vazio que ela deixou nos nossos corações. Amei minha mãe e quero vê-la sempre linda na minha lembrança. Jamais se recompensa u’a mãe. É uma dívida natural que rola como nenhuma outra. Quando o filho pensa na mãe, sabe que será um eterno devedor dos cuidados e carinhos que recebeu.  Se não pode fazer mais por sua mãe, faça pela mãe dos seus filhos. Mãe sempre falava: “U’a mãe é para cem filhos, mas cem filhos não são para u’a mãe”.

Ela sonhava mudar para a cidade, para dar estudo aos filhos. Sofreu, demorou, mas conseguiu. Tudo porque acreditava. Hoje, estou tentando descrever um pouco dos seus sonhos, graças ao estudo que tive por conta do esforço que ela fez. É o fruto do estudo produzindo conhecimento e gratidão.

Sua visão era ampla, como um farol de alto alcance. Avistava longe e tinha iniciativa. Gostava de mudar. Estava sempre antenada, atenta. Nada escapava do seu universo, sem ser captado pelo seu radar de alta precisão. Era uma máquina de produzir ideias. Às vezes entrava em atrito com pai, no cruzamento dos reflexos. Nada que atrapalhasse o bom relacionamento dos dois. Sua capacidade de visão era abrangente. Quem quer que a procurasse iria encontrá-la sempre disposta e pronta para agir. Era bom ter uma mãe assim, exceto quando havia necessidade de enganá-la. Não sei se alguma vez conseguimos. Tudo era compensado pelo jeitinho que ela tinha de consolar o filho.

Ela foi certa vez à Sertânia e não me levou. Eu tinha por volta dos cinco ou seis anos. Lembro-me do desespero que fiquei. A falta e aquele clima de saudade que ficou na sua ausência me deixaram sem opções. Olhei em volta, peguei um vestido dela que estava num cabide e comecei a cheirá-lo. Era seu cheiro. O cheiro dela estava impregnado no vestido. Que falta que me fazia. Foi um santo remédio para amenizar a saudade, e também a grande falta que ela estava me fazendo. A reciprocidade entre mãe e filho é um elo que as palavras não conseguem explicar plenamente. O tamanho da falta que ela deixa quando sai se justifica na sua volta. Bastam um abraço, um cheiro e algumas palavras mágicas, que só as mães sabem dizer, para que tudo volte ao normal. Quando se diz que a mãe é tudo para o filho, não é exagero. Seria mágica? Pode ser.

A meninada estava na sala curtindo uma daquelas brincadeiras que só ela mesma entendia. O clima era de total descontração. Todos estavam atentos quando, de repente, mãe aparece na sala trajando uma roupa de pai: terno, gravata, chapéu e sapatos. A meninada ficou perplexa, de boca aberta, e quando caiu na real... a farra explodiu. Todos queriam abraçá-la. Rimos e nos divertimos bastante, contagiados pelo palhaço improvisado por ela.

Uma grande mãe é como uma colcha de retalhos. Compõe-se no tempo, com arranjos, pequenos pedaços de sacrifícios, contrastando com fagulhas de alegria, na composição da família. Mãe, fonte de versatilidade tentando atender às necessidades dos filhos em época de crises.

Certa vez, na hora do almoço na Ringideira, os cachorros acuaram um bicho atrás de casa e alguém gritou: “É um Teiú”. Mãe não pensou duas vezes. Pegou a espingarda, mirou não sei pra onde e largou fogo. Deu para ver a poeira que o chumbo provocou num formigueiro bem lá na frente. A cena foi tão engraçada que até esquecemos o Teiú.

Seguindo o rastro da crise, mãe precisava costurar uma roupa para Geraldo e Reginaldo. Como o dinheiro estava fraco para comprar o tecido, dois sacos de farinha do reino resolveram o problema. Os sacos foram descosturados, lavados, tingidos de vermelho (encarnado), passados, e assim estava o tecido pronto para a confecção das roupas. Até aí tudo bem, não fosse um cachorro que nosso tio João Tarciso possuía. Ele nos estranhou. Precisamos de reforço para entrar na casa. Nas aventuras e desventuras de um filho, sempre tem um dedinho da mãe.

Mãe costurava, bordava, fazia renda com bilros e até cortava o cabelo dos filhos. Nunca teve escola para esses fins. Orgulho-me da mãe que tive e, agora, tentando descrever pequena parte dos seus feitos, sinto muita saudade dela. Todo esse patrimônio que tenho guardado com muito carinho me ajudou bastante na composição do seu centenário de nascimento. Não é difícil reconhecer as fontes que me têm ajudado nessa tarefa. A minha gratidão e o prazer de dividir com todos a inspiração que documentou essas lembranças. Esse trabalho tinha que ser feito. Era como se fosse uma dívida que tinha comigo mesmo. Não importa a pobreza do vocabulário, a falta de prática na composição das frases e montagem do texto. Fiz a minha parte.

Como já citei, na verdade, a nossa mãe já não precisa mais de nada que foi descrito neste trabalho. A herança de sentimentos que ela deixou em cada filho se manifestou na gratidão de cada um. Tenho prazer de anexar esse trabalho do centenário de mãe ao de pai, como um reconhecimento da união que eles tiveram em vida.

Guarulhos, SP, domingo 23/06/2013, às 20h15.

GALERIA DE FOTOS


FOTO 3 1928 Sertânia, PE: Lia aos 16 anos de idade.


FOTO 4 1935 ‒ Monteiro, PB: Lia recém-casada, ao lado de Nicoláu, recebe a visita de parentes: três irmãos (Antônio, João [sentados], e Luiz Gonzaga), uma irmã (Auta Aurélia [sentada]) e duas sobrinhas (Olívia e Nacy).

FOTO 5 1945/1946 ‒ Caroalina, Sertânia, PE: Lia eternizada nos descendentes (da esq. p/dir.): Geraldo, Raimundo, Duza (José), Reginaldo e... Renivaldo na barriga. O lindo carneiro entra como mascote pertencente ao filho mais velho.

FOTO 1956 ‒ Arcoverde, PE: O patriarca Luiz Avelino Freire ladeado pelas filhas Auta Aurélia (1ª à direita), Lia (1ª à esquerda), pelo filho Pedro Freire e pela nora Luísa Líbia.

FOTO 7 1958 ‒ Arcoverde, PE: Lia se recupera de delicada cirurgia de vesícula, sob os cuidados do competente doutor Jennecy Ramos.


FOTO 8 1965 ‒ Caroalina, Sertânia, PE: Lia se sente orgulhosa ao lado do marido e da primeira neta, na casa construída com muito sacrifício no vilarejo de Caroalina, para onde se mudaram no primeiro de janeiro daquele ano.


FOTO 9 1972 ‒ Campina Grande, PB: Lia ao lado da única filha (Luza), do filho mais novo (Renivaldo) e da primeira neta (Socorro).


FOTO 10 1972 ‒ Campina Grande, PB: Lia ao lado de Luza, Socorro e Renivaldo.


FOTO 11 20/06/1973 ‒ Campina Grande, PB: Lia realizada com o casamento da única filha.


FOTO 12 26/01/1974 ‒ Recife, PE: Lia se faz presente ao casamento do filho mais novo, Renivaldo, e de Cosma.


FOTO 13 26/01/1974 ‒ Recife, PE: Lia é toda alegria e felicidade ao lado de Cosma e de dona Isabel.


FOTO 14 1974 ‒ Campina Grande, PB: Lia presente nos primeiros meses de gravidez de Cosma.


FOTO 15 1974 ‒ São Paulo, SP: Lia se tornou andarilha e viajou a São Paulo para visitar seus queridos. Aqui com Luza, Lula e a pequenina Luciana.


FOTO 16 26/01/1975 ‒ Campina Grande, PB: Lia na comemoração das Bodas de Algodão de Cosma e Renivaldo.


FOTO 17 1985 ‒ Campina Grande, PB ‒ Lia eternizada no neto e nas netas (da esq. p/dir.): Raquel, Joran (sentados), Myrtes, Luciana, Miriam e Cristiane.


FOTO 18 1990 ‒ Primeira Igreja Batista de Beberibe, Recife, PE: Lia entra de braços com o filho mais novo que completava dez anos de pastorado.


FOTO 19 1970 ‒ São Paulo, SP ‒ O autor do texto sobre Lia chegou a São Paulo em 1965, aos 22 anos de idade, onde se fixou até hoje.


FOTO 20 Data e local desconhecidos ‒ Lia em mais um momento encantador de sua trajetória.


FOTO 21 2005 ‒ O autor do texto sobre Lia, em momento de descontração em Caraguatatuba, SP, no apartamento da querida sobrinha Anilma Freire.


FOTO 22 1962 ‒ Arcoverde, PE: Essa saiu do forno agora. Reginaldo, aos 19 anos, aqui está ao lado de Rocha, colega no Tiro de Guerra 154. Local da foto: Fazenda Experimental.




[i] O título original do artigo foi dado pelo próprio autor, a saber: “O centenário da nossa mãe”.

[ii] Quando me veio a ideia de compartilhar o espaço deste Blog com a publicação do artigo de Regi, eu me perguntei a razão da inclusão de Algodões no texto, com o nome de “sítio”. Hoje, Algodões é um vilarejo, ou distrito, pertencente ao município de Sertânia. Para desfazer o nó, liguei para ele e procurei saber se mãe havia nascido lá, mas ele não soube responder. A meu ver, ela nasceu na cidade de Sertânia mesmo. Porém, diante desse registro, fica a dúvida se, de fato, em 1912 Algodões era apenas um sítio e nossa mãe nasceu lá. Para resolver esse impasse, só uma pesquisa nos cartórios da região.  

[iii] “Sua escolaridade era praticamente zero”, escreve Regi no seu texto. E isso é verdade. Mesmo com toda essa defasagem de alfabetização, já na fase madura Lia conseguiu ler a Bíblia praticamente toda, quando fixou residência em Campina Grande, com o filho mais novo, e aderiu à Primeira Igreja Batista. No acervo desse dito filho estão arquivadas uma grande quantidade de cartas escritas por ela. Pode-se dizer que, pelo esforço pessoal, ela se tornou uma espécie de autodidata. Ela que tanto lutou para que os filhos e a filha estudassem, não teve o mesmo privilégio.    

[iv] João Nepomuceno Freire (16.06.1946-17.06.2009, 63), seu querido sobrinho, filho de Daniel Freire, jamais se esqueceu de uma saborosíssima sopa que tomou na casa de Lia, quando ela residia em Sertânia.

 

 



 



domingo, 3 de outubro de 2021

ESCARAMUÇAS DE UM DUELO ENTRE DOIS GIGANTES

 

FOTO 1 ‒ Kyle muito confortável sob os cuidados da linda, querida e cuidadosa mamãe.



ESCARAMUÇAS DE UM DUELO ENTRE DOIS GIGANTES [i]

enivaldo ufino

Aquele domingo 09/09/2007 estava ensolarado e deslumbrante em São José dos Campos, SP. Anilma chegara dos Estados Unidos, com o esposo Clay e o filho Kyle que, na época, beirava a casa dos dois anos de idade [ii]. Trocando em miúdos: ele estava com um ano, onze meses e seis dias. Ou, então, por outro prisma: faltavam vinte e quatro dias para o garoto guerreiro completar dois anos de idade. Seu avô Raimundo e sua avó Anita, estavam muito felizes com a chegada dos três: da filha, do genro e do netinho. Estavam tão felizes que resolveram brindar a felicidade oferecendo um suntuoso almoço em homenagem aos recém-chegados, para o qual convidaram alguns de seus familiares. E de Guarulhos lá fomos nós: o autor, seu irmão, Regi (Reginaldo), e sua cunhada, Jeanete, que ainda não conheciam o little and handsome boy (pequeno e belo garoto), e nem seu simpático pai. A barreira da língua não foi empecilho para uma agradável comunicação, inclusive com o pequerrucho de mãe brasileira e pai americano.

Os quitutes servidos no almoço estavam deliciosos. O tempero especial da festa era a simpatia e indisfarçável alegria dos queridos anfitriões, que coroava a felicidade de todos. Os convivas somavam uma pequena multidão, da qual fazia parte um número razoável de crianças, inclusive Ítalo, sobrinho-neto do autor, que estaria aniversariando dois dias depois, no 11 de setembro, quer dizer, vinte e dois dias antes de Kyle. E o autor – que pesquisava e estudava justamente a infância no livro primeiro das Confissões, de Agostinho de Hipona –, estava de olho naquela turminha de pouca estatura, pouca idade e muita dependência e fragilidade, pois, como diz Agostinho, é nas coisas pequenas que observamos “as noções comuns às pequenas e às grandes coisas”. E o que ele observou naquele dia merece um registro para a posteridade.

À primeira vista, tudo parecia muito paradoxal, com dois mundos distintos insistindo em ocupar o mesmo espaço físico: de um lado, os adultos tratando dos seus negócios, do outro lado – e ali mesmo, numa mistura inseparável –, as crianças tratando também de seus negócios, isto é, de suas brincadeiras [iii]. O lúdico parecia estar presente apenas no mundo infantil. E eles, os menores, comandavam a festa das brincadeiras, do barulho, da alegria totalmente descontraída, quer entre eles mesmos, quer investindo e conseguindo de vez em quando a participação de um daqueles adultos tão ocupados.

Notei que todas as crianças estavam descalças, exceto uma: Kyle. Observei, ainda, que o espaço muito bem cuidado da área exterior e do jardim da casa, não oferecia perigo algum à fragilidade dos membros infantis. Fiel à imitação própria das crianças – e muitas vezes também dos adultos –, ele resolve se desfazer das alpercatas. O calçado era bonito, cômodo, apropriado em termos de segurança, mas naquele momento nada disso funcionava. Agora era tempo de cair na estripulia que tomava conta de todos e ficar igual aos demais. Quer dizer: livrar-se daquela incômoda invenção humana para proteger os pés. Era o espontâneo ato do mimetismo da alma infantil no comando do corpo. Era a vontade do querer da criança, que sempre apela tão forte aos ouvidos e razão do adulto, que naquele momento não oferecia o mínimo perigo aos pés do simpático little boy (pequeno garoto).

E o que vejo a seguir? O começo de uma guerra – a princípio um tanto silenciosa e nada belicosa –, abrindo espaço no meio daquela barulhenta paz e algazarra da alegria dos jogos infantis. Kyle não está mais sozinho no meio dos seus pares, pois papai Clay veio ficar de cócoras pertinho dele. Noto que os dois conversam – em inglês, claro! –, mas não escuto o conteúdo da conversa, pois estou um pouco distante. Posso me colocar apenas como aquele que observa e imagina. De uma coisa estava certo: ele queria ficar descalço como as demais crianças. Assim começa a luta entre aqueles dois gigantes tão diferentes um do outro, apesar de tão similares quanto à natureza. Parecem até dois outros mundos dentro daquela duplicidade de mundos: de um lado, o garoto que quer se livrar do calçado, do outro, o carinho e o cuidado do pai ao emitir o preceito para aquele momento, sob a tutela da autoridade paterna: sob o ponto de vista deste, não era aconselhável Kyle ficar descalço.

A essa altura do desenrolar daquela guerra nada fria eu já não tinha dúvidas, pois agora ela tomara aspectos teatrais, através de gestos, contrações faciais e até choro: Kyle quer ficar descalço, Clay quer que ele continue calçado. São duas vontades que colidem num arroubo volitivo, só que não na mesma pessoa, mas em duas pessoas diferentes: uma quer uma coisa, outra quer outra coisa. Kyle quer ficar descalço, Clay quer que ele não queira ficar descalço. Naquele instante, estão em mundos diferentes. São dois gigantes que se digladiam num conflito sem aparato bélico, porém com o poder das armas retóricas, apesar do diminuto domínio intelectual da fala de que dispõe um daqueles fortes guerreiros.                     

Às vezes a vontade entra em choque na alma da mesma pessoa, isto é, no chamado homem interior, quando quer ao mesmo tempo duas coisas diferentes e contraditórias. Quer exatamente aquilo que não deve querer e não quer aquilo que deve querer. Este é um tipo de conflito familiar a muitos de nós, senão a todos. Quem dá uma ideia disso é o poeta latino Ovídio (43 a.C.‒18 d.C., 61), quando afirma o seguinte: “Vejo o melhor, aprovo, e sigo o pior ‒ uideo meliora proboque deteriora sequor” [iv].

Voltando ao relato após essa aparente digressão, vamos encontrar a cena alterada pelo beligerante mais novo. O poder retórico da argumentação adulta não foi suficiente para alterar sua vontade, que reage com vigor, rompendo o silêncio no meio daquela algazarra: começa a chorar e a tirar, ele mesmo, aquela coisa desagradável dos pés. Agora tudo fica ainda mais engraçado, pois na tentativa de se livrar do calçado, um dos pés fica preso apenas pelo calcanhar, com todos os dedos de fora, brincando num gostoso movimento e em gozo de total liberdade. Naquele jogo infantil, o desafio estava posto com muita clareza, pois é como se ele dissesse ao pai: quero liberdade para os meus dois pés. Nesse ínterim, eu me perguntava: qual dos dois gigantes sairá vitorioso? E que bom observar tudo aquilo tão minuciosamente como eu observava. Ainda mais quando o tamanho de um dos gigantes era tão pequeno em estatura quanto um pequeno polegar. Mas naquela arena ele se agiganta com as armas da vontade de querer, sem se deixar levar pelos argumentos retóricos e pelos contraditórios encantos. Ele quer porque quer, e ponto final.  

Os intensos movimentos corporais comandados pelas afecções bem ordenadas da alma em ebulição ‒ forma de argumento pela carência de maiores poderes racionais ‒, em nada contribuem para convencer o sólido aparato conceitual do pai. Este, ainda agachado, age com muita cautela e paciência ao colocar o resto do pé do filho para dentro da alpercata. Levanta, sai com ele nos braços e, de soslaio, noto lágrimas nos olhos e as faces ruborizadas do garoto, em contraste com a placidez, segurança e tranquilidade do rosto paternal. Pensei comigo, mais uma vez: nesta guerra de vontades, parece que o pai saiu vitorioso. Será que saiu? Nem tudo é o que parece, ainda mais quando se trata de pequenas pessoas, porém não tão pequenas quanto parecem. Ali se concretiza o que Agostinho recomenda, isto é, que devemos observar nas coisas pequenas as noções comuns às pequenas e às grandes coisas. Ao observar momentos depois o alegre, descontraído e barulhento bando de crianças em suas brincadeiras infantis, vi Kyle pulando alegre entre seus pequenos companheiros, sorrindo, feliz da vida e... descalço!




GALERIA DE FOTOS

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FOTO 2 ‒ Kyle se diverte na praia de Boa Viagem ao lado de papai e mamãe.
FOTO 3 ‒ Kyle se torna minúsculo diante da grandiosidade da natureza.

FOTO 4 ‒ Onde o garoto vai, sempre encontra facilidade de lidar com esses pequenos animais.

FOTO 5 ‒ A vontade de querer de Kyle submete até a pequenina lagartixa: ela vai aonde ele quiser que vá.
FOTO 6 ‒ Kyle e Tiago se divertem na praia de Boa Viagem, Recife, PE.

FOTO 7 ‒ Os priminhos Kyle, Tiago e Guilherme, em Campina Grande, PB.

FOTO 8 ‒ De passagem por Campina Grande, a vovó e a mãe de Kyle (Anita e Anilma) encontram Nicinha e Luza.

FOTO 9 ‒ O centro das atenções é Kyle e sua maestria em capturar e lidar com uma pequenina lagartixa.

FOTO 10 ‒ Aí está o resultado do esforço do garoto: uma lagartixinha muito dócil.
FOTO 11 ‒ De Campina Grande vieram a Recife, para visitar Kyle e sua comitiva: Davi, Myrtes, Lula e Luza.
FOTO 12 ‒ A alegria aqui tomou conta de todo mundo! Clay, Anilma e sua prima Mercinha (Erimércia), Émerson, Kyle, Thales e Ítalo.

FOTO 13 ‒ Kyle cresceu e apareceu. Eis aí o nosso querido adolescente em 2021.



NOTAS

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[i] Este artigo foi escrito em 2007, quando o autor ainda estava fazendo o doutorado em São Paulo.

[ii] Kyle Freire Lofgren (03/10/2005), sobrinho-neto do autor, é filho de Anilma Souza Freire (06/09/1967) e John Clay Lofgren (07/11/1956), cujo casamento ocorreu em 04/08/2002.

[iii] Agostinho diz que as brincadeiras dos adultos chamam-se negócios e as das crianças, sendo tão importante quanto, é castigada pelos adultos: “Mas as brincadeiras dos adultos chamam-se negócios, ao passo que as das crianças, sendo a mesma coisa, são castigadas pelos adultos, e ninguém se compadece das crianças, nem daqueles nem de ambos ‒ sed maiorum nugae negotia uocabantur, puerorum autem talia cum sint, puniuntur a maioribus, et nemo miseratur pueros uel illos uel utrosque” (conforme Confissões I ix 15).

[iv] OVÍDIO. Metamorfoses VII xx 21; observe, ainda, o que diz Agostinho, já convertido ao cristianismo, em Confissões X xxxii 48, num linguajar em que utiliza até palavras similares às usadas por Ovídio: “[...] e ninguém deve ter a certeza nesta vida – que toda ela é chamada uma provação – se aquele que pôde de pior tornar-se melhor, de melhor não se tornará pior – et nemo securus esse debet in ista uita, quae tota temptatio nominatur, utrum qui fieri potuit ex deteriore melior, non fiat etiam ex meliore deterior”.