GINA [i],
MUSA DE PRÍNCIPES, PLEBEUS E POBRES DIABOS
ℛenivaldo
ℛufino
Provocado pelo meu querido irmão Regi [ii],
que foi provocado por três fotos da musa Gina Lollobrigida (04/07/1927), e
ouvindo, com fones de ouvido, a belíssima e emocionante música Silêncio, com Flávia Wenceslau, ouso
falar sobre o que não posso e nem devo falar, sobre o que seria melhor calar,
pois por ser inefável é também inalcançável com explicações e palavras vazias
de sentido. Com lágrimas nos olhos,
diante das imagens da musa aqui diante de mim e do som também inefável, resolvo
ousar, teimar e escrever alguma coisa, mesmo que inútil, pois sei que assim
faria também Agostinho de Hipona (354-430), filósofo queridíssimo e sobre cujos
textos me debruço há cerca de vinte e três anos, tentando entender um pouco
pelo menos da superfície do seu pensamento.
Como falar de
Gina? Como falar do que ocorreu na minha vida interior e exterior quando tinha
apenas 12 anos de idade? Eu era apenas um menino. Mas foi tão forte que até
hoje mexe muito comigo. Mexe e me faz muito feliz. Mexe e me diz que eu continuo
aquele mesmo menino. Mexe e me convence de que aquele menino amante de cinema
não morreu, pois para onde teria ido, como sugere Agostinho nas Confissões? E nesse ponto as
lágrimas teimam em banhar o meu rosto. Eu era apenas um menino e deveria
guardar todas essas coisas do espírito em completo silêncio dentro de mim e só para mim. Mas não pude guardar, pois era muito forte. Aliás,
continua sendo muito forte. E foi justamente meu queridíssimo irmão quem
teve acesso a essas coisas interiores que se esparramavam no meu exterior,
assim como estão tendo todas e todos que tiverem acesso a essa confissão do meu
coração. Mesmo distante, Regi sempre esteve muito perto e, assim como Gina,
continua perto até hoje. E gosta de
fazer essas coisas comigo, de me provocar, de me empurrar para mergulhar mais
fundo, de me levar a ficar assim como estou agora. E eu até que gosto, pois só
ele sabe fazer isso, só ele sabe mexer comigo dessa maneira, só ele sabe
cutucar meu coração, estimular meus olhos a verterem lágrimas como agora.
Regi é tão
especialista na arte de mexer comigo, que disparou essa atrocidade: "O que
farias se apagasse Gina da tua lembrança? Estou apenas mexendo contigo,
pois essa seria a última brincadeira de mau gosto que tiraria com alguém que
sempre representou o meu bom gosto!" Puxa vida, quanta santa crueldade em nome do amor. Apagar Gina da minha
lembrança? Seria como apagar as minhas lembranças mais caras, mais sublimes,
mais queridas, mais constantes, mais presentes, mais passadas, mais futuras e
mais eternas. Seria um desmoronamento completo, total. E um desmoronamento do
meu interior e exterior. Por isso mesmo não posso silenciar. Por isso mesmo
insisto em teimar e falar. E nem preciso ouvir o céu e a imensidão, como Flávia
continua cantando, mas apenas ouvir o meu coração, meu interior, até mesmo o
sentimento oculto lá no íntimo do íntimo, só para lembrar Agostinho mais uma
vez.
Gina é uma deusa
para mim, como Regi chega a sugerir? "Como qualificar uma lembrança
dessas? Imagino que na entrada da imagem dela na tua percepção ocorreu não
apenas uma aprovação imediata, como em especial aquele algo mais como um
Endeusamento". É, até que poderia ser, mas não é. É mais que isso, pois eu
não posso explicar, simplesmente não sei explicar, só sei sentir. Quando tento
traduzir em palavras finitas aquilo que me é infinito, a minha tentativa
frustrada só me leva aos 12 anos. Retorno para lá e trago tudo aquilo para cá,
para o aqui e o agora. Ao mesmo tempo, permaneço lá experimentando aquelas
mesmas delícias paradisíacas do menino que eu fui e não sou mais. O menino
teimoso que me surpreende dizendo que não desapareceu, não foi embora, não me
abandonou à própria sorte. O menino que ainda me dá alegrias infindas,
maravilhosas, inesquecíveis e duradouras.
Gina não é uma
deusa para mim, nem que a palavra fosse escrita com letras maiúsculas, assim,
Deusa, não, não é. Eu nunca a adorei. Eu nunca lhe fiz preces e nem me prostrei à imagem de seus lindos pés. Eu nunca lhe dei em abundância para que ela me
ficasse devedora, só para lembrar Agostinho mais uma vez quando fala da relação
mercantilista entre o homem e Deus. Definitivamente, ela não é uma deusa para
mim. Pode ser apenas uma musa, uma inspiração, uma respiração profunda,
serena, tranquila, um agradável raio de luz do Sol, uma doce lembrança, um
tesouro que trago comigo há justos 62 anos, um sopro de vida a impulsionar
minha vida. Feito uma flor que resistiu,
assim sou eu, conforme diz Flávia em
seu Silêncio nada silencioso e tão
maravilhoso aos meus ouvidos e coração.
Seria possível
arrancar uma coisa dessas do interior e exterior de alguém? É impossível. Seria
possível explicar uma coisa dessas com o recurso de palavras sem recursos
linguísticos suficientes? Seria também impossível. Mesmo assim, tudo é
possível, só para lembrar os paradoxos agostinianos, pois, conforme diz Regi
com suas palavras de sabedoria, as coisas que não têm explicações, e que estão situadas além do belo, são "criadas apenas pra serem sentidas, jamais explicadas!" Disse tudo. Está
além, muito além, e também está aquém, muito aquém. Gina é tudo isso e muito, muito mais. Contemplar
sua beleza etérea nessas três imagens é extremamente emocionante para mim, mas
também gratificante, pois me transporta a três momentos específicos de minha
trajetória desde aquela meninice. São os três momentos dos próprios
registros fotográficos, mas também outro momento tremendamente dramático,
quando me desfiz de tudo que colecionara sobre ela, e até mesmo da maior parte
dos desenhos que traçara desde a minha adolescência. O menino, agora, estava
com apenas 22 anos. Na sua vida interior e exterior, a musa parecia digladiar-se com um Deus muito poderoso. Claro que, no primeiro momento, o poderoso
Deus sairia vencedor. Ele era um Deus e ela era apenas uma musa, uma
inspiração, uma gostosa e suave lembrança que acalentava o coração do menino,
do jovem, do adulto e do futuro senex
‒ pessoa de idade avançada ‒, lembrando Agostinho mais uma vez.
Mas como as coisas do coração são muito fortes, do coração
que precisa repousar como diz Flávia
na música, a musa reapareceu muito tempo depois, uma vez que, assim como o
menino que não morrera, ela também prevalecera durante todo o tempo que
parecera não prevalecer. Ela continuava lá, silenciosa, bela, terna, sempre
presente, agradável, deliciosa aos olhos e à mente, imortal, uma verdadeira Vênus Eterna, como escreveu certo
articulista. Se Flávia fala sobre encontrar
todas as folhas que eu juntei, eu falo sobre tudo que comecei a encontrar e
juntar desde que reencontrei a musa. E essa segunda fase foi ainda mais emocionante e mais rica que as
anteriores.
Lembro-me que às margens do rio Sena, em Paris, em 1990, eu a
encontrei ao vivo e a cores em uma revista conservadíssima de 1959, no papel da
perturbadora Rainha de Sabá ‒ só pronunciar esse nome chega a me causar
arrepios! ‒, quando a linda soberana forçou o grande Rei Salomão a se dobrar
diante de seus encantos de mulher pagã.
Eu também a encontrei, espiritualmente, na Catedral de Notre-Dame, onde ela fez
o filme que me conquistou aos 12 anos de idade, O corcunda de Notre-Dame (Notre-Dame de Paris). E eu
fotografei a catedral como se estivesse fotografando a bela Esmeralda. Só dos
umbrais das portas que dão acesso à nave principal eu tirei trinta e nove fotos.
É certo que perdi tudo em Seul, para onde me dirigia com os demais quarenta e
um componentes do Coral Sinfônico do Seminário Batista de Recife. Mas valeu a
pena. Ah, como valeu!
A surpresa maior o
menino só teria quando chegasse a São Paulo para fazer a tentativa de concorrer
a uma vaga ao doutorado em filosofia na USP. E onde ficou hospedado como
se fora um príncipe? Providencialmente, na casa do seu inseparável e provocador
irmão. Estada de 1955 dias corridos digna
da própria Gina Lollobrigida. Nas suas idas e vindas pela terra da garoa, encontrou uma banca de
revistas antigas na República, onde resgatou uma infinidade de Cinelândia,
Filmelândia, O Cruzeiro, Manchete, enfim. Tudo isso o deixou ainda mais feliz e realizado. A surpresa maior ainda
estava por vir. Certo dia, encontrou uma Filmelândia e, ao abrir a revista, viu
a foto de Gina estampada no verso da capa. Bastou isso para comprar a revista,
pois era o suficiente. Quando foi folhear a Filmelândia à noite, ao chegar
a casa, ficou estupefato diante do que viu: seu próprio nome estava lá, na
seção Correio dos Fans, como Renivaldo Freire, e quando contava
apenas 15 anos de idade e morava em Arcoverde. Ricardo, dono da banca, ficou impressionado
e disse que era caso para publicação. E aquela foi mais uma revista resgatada,
depois de tanto tempo de silêncio e distanciamento forçado por uma
circunstância.
E o que mais
dizer? São tantas coisas para dizer do que não posso dizer, falar nem escrever,
que finalmente é melhor calar. É preciso fazer silêncio, como sugere Flávia Wenceslau nesse exato momento,
silenciar para contemplar a beleza de uma musa que não apenas representou
"A mais bela mulher do mundo" em 1956, como foi eleita nos anos 1960
como a mais bela do mundo, diante de belezas estonteantes como as de Elizabeth
Taylor, Brigitte Bardot, Sophia Loren, Claudia Cardinale e tantas outras. É preciso silenciar diante da confissão de
um menino que hoje vive a plenitude de uma alegre e feliz senectude. Silêncio, pois é hora de repouso, já é
madrugada, hora de ouvir o coração, hora de me deleitar diante de tantas e
tantas belezas que circundam minha vida. É hora de usufruir o prazer da
inspiração de uma musa que alegrou e mexeu com o coração de príncipes, plebeus e
pobres diabos ao redor do mundo, e até mesmo com um matutinho, um matutinho de
Caroalina, aquele pequeno vilarejo pertencente à cidade de Sertânia, em
Pernambuco. Silêncio, pois agora eu quero ouvir o que me diz a imensidão
dos tesouros depositados nos palácios da
minha memória, e dormir sossegado, tendo o pensamento voltado para minha musa, meu filósofo e para tudo que me proporciona vida, alegria e realização. Minha musa
como representante de todas as coisas que me causam prazer e alegria nos dias atuais, e meu filósofo como
representante do profundo desejo de um mero amigo
da sabedoria que continua um eterno menino aprendiz, apenas aprendiz e nada mais. Silêncio!
[i] Meu irmão me fez a provocação às 21h45 do dia 14.09.2020, nos seguintes termos: Gina ‒ Não tem como esquecer, por mais ou menos que se apresente o detalhe. Apenas você viu, de todos que conheci, e eu, que de tanto ser lembrado, terminei ficando acordado para não perder as próximas novidades. Gostaria de pedir os teus olhos emprestados por um instante, só para captar os lances reservados por ti. Esses lances tinham que abranger externo e interno (da própria Gina). Isso não é querer demais? O que farias se apagasse Gina da tua lembrança? Estou apenas mexendo contigo, pois essa seria a última brincadeira de mau gosto que tiraria com alguém que sempre representou o meu bom gosto! Como qualificar uma lembrança dessas? Imagino que na entrada da imagem dela na tua percepção, ocorreu não apenas uma aprovação imediata, como em especial aquele algo mais como um Endeusamento! Diria sem segundas intenções: são coisas sem explicação, situadas além do belo, criadas apenas pra serem sentidas, jamais explicadas! Apenas tentei dividir o melhor de ti, para testar até onde vai o prazer das nossas caminhadas!
[ii] Texto original produzido a partir da provocação que me foi feita pelo meu irmão Reginaldo Freire. Escrevi o conteúdo sob forte emoção, a partir das 22h35 do dia 14, aos 54 minutos do dia 15.09.2020. Para a publicação, fiz mais algumas revisões e pequenos acréscimos, e incluí mais algumas fotos da atriz.
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