domingo, 6 de março de 2022

O SOPRO DO VENTO DA MORTE: MEMÓRIAS INESQUECÍVEIS DE UM EX-PASTOR (1)

 

FOTO 1 ‒ 1981, em um dos salões de reunião da Primeira Igreja Batista de Beberibe, Recife, PE: (a partir do primeiro banco, da esquerda para a direita) Zélia, Cosma[i], Ladi, Severino Laurindo, Iracema Leitão, Francisco Guimarães (rosto parcialmente coberto e mão espalmada), não identificada, Agenora (por trás de Zélia), Zacarias Nazário, Francisco Dias, Antônio André (parcialmente encoberto por Iracema), Anunciada, Nazaré, Lúcia (na frente de Nazaré), não identificada, (parcialmente encoberta pela mão de Francisco Guimarães), David Romualdo.


O SOPRO DO VENTO DA MORTE:

MEMÓRIAS INESQUECÍVEIS DE UM EX-PASTOR (1)

enivaldo ufino

 

O sopro do vento da morte está sempre à nossa espreita. A própria vida é como se fora uma espécie de roleta russa, na qual estamos incessantemente a um passo do que costumo chamar de eterno presente, estado ao qual somos conduzidos logo após a morte. Na verdade, somos inseridos nesse verdadeiro redemoinho mortal desde o momento em que fomos gerados no ventre materno, pois viver é morrer e morrer é viver. Trata-se, portanto, de uma experiência comum a todos nós, por conta da nossa fragilidade e da inevitabilidade da morte.

O profeta Isaías toca nesse ponto quando tem aquela visão beatífica, onde registra: “No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as abas de suas vestes enchiam o templo” (Isaías vi, 1). Comigo aconteceu alguma coisa assim, mas não que eu tenha visto o Senhor, pois jamais o vi. Foi na semana que a irmã Zélia morreu. Fui tocado pela inspiração para começar a escrever sobre minha experiência no pastorado da Primeira Igreja Batista de Beberibe, de 08 de dezembro de 1979 a 07 de março de 1993. Diria, parafraseando a Bíblia, que se fossem escritos livros sobre essa experiência, eles não caberiam no mundo inteiro.

Pinçarei apenas algumas ocorrências com as quais fui brindado nos treze anos e três meses que estive no pastorado daquela igreja. E os fatos serão narrados não na exata ordem em que aconteceram, mas aleatoriamente. Na primeira dessas ocorrências, escolhi o momento quando a morte soprou na minha direção. E quem estava comigo na ocasião era justamente a irmã Zélia. E não somente ela, mas também Zacarias Nazário, Lídia e Severino Laurindo, que sempre me acompanhavam nas visitas que fazia aos domingos à tarde, no único dia e horário disponíveis para tal atividade.

Eu possuía um Chevette 1981, adquirido no ano em que nasceu minha filha Raquel. Ele era de cor cinza e sem o conforto de um sistema de ar condicionado. O jeito era apelar para a climatização externa, que vinha com rajadas de vento desarrumando o cabelo das pessoas que se comprimiam no pequeno espaço. A solução para tentar evitar a desarrumação, era fechar um pouco os vidros das janelas a fim de dar uma trégua, e, por outro lado, suportar o aumento de temperatura. Apesar disso, a tarefa era muito agradável, inclusive pelo fato da alegre conversa que se desenrolava durante o trajeto de cada visita.   

Naquele domingo fomos ao Hospital de Paulista, que fica a cerca de 20 km de Recife, visitar a alguém da igreja que estava hospitalizado. Ao terminar a visita, voltamos em direção a Recife, por uma estrada que, na época, era de mão dupla. Com o trânsito um tanto intenso, chegou o momento quando o Chevette ia à frente de todos os demais veículos. Estava imensa a fila na retaguarda, pois o trânsito no sentido contrário nem sempre dava chances de ultrapassagem, como era o caso naquele exato momento.

Com os vidros das janelas ligeiramente abertos, senti, de repente, assim como que um vento forte passando bem perto do meu ouvido esquerdo, quer dizer, na lateral esquerda do Chevette, que foi balançado como que ficando numa espécie de desequilíbrio. Mas tudo foi muito sutil e quase imperceptível. Logo em seguida, verificamos que tinha sido um Fusquinha que passara ao nosso lado, em altíssima velocidade e ziguezagueando no asfalto.

Bem mais adiante havia um ônibus estacionado no acostamento do lado direito da pista, no sentido que trafegávamos. Assim num abrir e fechar de olhos, o fusquinha começou a se desgovernar, como se tivesse sido brecado de repente, e rodopiar como se fosse voltar em nossa direção. A essa altura eu já fui me precavendo, diminuindo a velocidade e colocando o carro para o acostamento, e com todos os demais veículos à retaguarda.

Continuamos dentro do carro. Notamos, então, que o fusquinha deu meia volta, foi na direção do ônibus, bateu fortemente na lateral, deixando um imenso buraco na lataria e, aí sim, ficando de frente para nós e como que vindo em nossa direção. Já estava amassado feito um maracujá. Parou bruscamente a poucos metros depois que mudou a direção na pista e a uma boa distância de onde estávamos. A essa altura já sem para-brisa, que quebrara com o tremendo impacto, com a porta do lado direito aberta e a pessoa que vinha no banco caída no asfalto. Soubemos, ainda, que um garoto que ia no banco traseiro foi arremessado através do para-brisa quebrado e jogado fora da pista.

  Naquele momento, quando o iminente perigo já havia passado, alguém chegou ao meu lado, que ainda estava dentro do Chevette e com a porta fechada, e foi argumentando: ‒ “O senhor notou? Vocês tiveram o maior livramento da vida agora. O Fusquinha vinha na direção da lateral do seu carro, e desviou em cima da hora. Caso se chocasse, teria arrebentado seu carro e acabado com vocês”. Diante daquela declaração me veio à mente o sopro de vento que senti momentos antes e o ligeiro desequilíbrio do Chevette.

Passado o susto, mas com meu coração ainda acelerado, saímos do carro. Fui verificar o que ocorrera. Pensei encontrar a lataria de alguma maneira danificada. E por mais que procurasse nada encontrava que justificasse o que ocorrera com aquela meteórica passagem do fusquinha. Insisti na procura, e nada. Até que alguém notou uma pequena peça no asfalto. Era a polaina esquerda do para-choque traseiro. Uma peça tão diminuta que quase não foi percebida. O Fusquinha passara tão perto do Chevette, que arrancara apenas a polaina e não danificou o carro em nada mais. Não houve um pequeno arranhão sequer.

Esperamos que o carro fosse removido e o trânsito liberado, para continuar a viagem de volta para Beberibe. Dias depois soubemos que os dois ocupantes adultos, inclusive o motorista, estavam bêbados. Como resultado do impacto contra o ônibus, o que ocupava o banco dianteiro reservado ao passageiro caiu com o rosto no asfalto quando a porta abriu e morreu na hora. O motorista e o garoto sobreviveram. E nós, os cinco ocupantes do Chevette cinza, também escapamos por um triz do sopro do vento da morte.               

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FOTOS
FOTO 2 ‒ 1988, março: o Chevette cinza foi substituído pelo seu irmãozinho de cor verde, mas continuou na ativa e ficou em minhas mãos durante treze anos.
FOTO 3 ‒ 21/08/1987, Juazeirinho, PB: em viagem a Sousa, o Chevette teve um problema mecânico e precisou ser socorrido.
FOTO 4 ‒ Detalhe: foi justamente essa polaina da extremidade do para-choque esquerdo da traseira que o Fusquinha arrancou, sem deixar nenhuma outra marca no Chevette.
FOTO 5 ‒ Recife, PE, 19/09/1985: na primeiro foto essa linda criaturinha não aparece porque ainda estava na barriga de mamãe. Aqui, no dia de seu aniversário de 4 anos, é protegida bem de perto pelo Chevette.
FOTO 6 ‒ Beberibe, casa pastoral, 1984, abril: Erick e Raquel sendo contemplados pelo farol do Chevette. 
FOTO 7 ‒ Caroalina, Sertânia, PE, 1983: aqui, Joran preferiu a bela montaria e deixou o Chevette de escanteio.
FOTO 8 ‒ Ringideira, Monteiro, PB: Joran e a prima Anilda fazem pose em frente ao Grupo Escolar Júlio Raimundo, enquanto o Chevette espera pacientemente.
FOTO 9 ‒ Beberibe, Recife, PE, sem data: grupo da Primeira Igreja Batista de Beberibe. A irmã Zélia, que estava no Chevette naquele dia quase fatídico, aparece nesta foto, à esquerda da irmã Efigênia Brandão.



[i] Cosma estava grávida de Raquel, que nasceu em 19/09/1981.