O SOPRO DO VENTO DA MORTE:
MEMÓRIAS INESQUECÍVEIS DE UM EX-PASTOR (1)
ℛenivaldo
ℛufino
O sopro do vento da morte está
sempre à nossa espreita. A própria vida é como se fora uma espécie de roleta
russa, na qual estamos incessantemente a um passo do que costumo chamar de eterno
presente, estado ao qual somos conduzidos logo após a morte. Na verdade, somos
inseridos nesse verdadeiro redemoinho mortal desde o momento em que fomos
gerados no ventre materno, pois viver é morrer e morrer é viver. Trata-se,
portanto, de uma experiência comum a todos nós, por conta da nossa fragilidade
e da inevitabilidade da morte.
O profeta Isaías
toca nesse ponto quando tem aquela visão beatífica, onde registra: “No ano da
morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e
as abas de suas vestes enchiam o templo” (Isaías vi, 1). Comigo aconteceu
alguma coisa assim, mas não que eu tenha visto o Senhor, pois jamais o vi. Foi
na semana que a irmã Zélia morreu. Fui
tocado pela inspiração para começar a
escrever sobre minha experiência no pastorado da Primeira Igreja Batista de
Beberibe, de 08 de dezembro de 1979 a 07 de março de 1993. Diria, parafraseando
a Bíblia, que se fossem escritos livros sobre essa experiência, eles não
caberiam no mundo inteiro.
Pinçarei apenas
algumas ocorrências com as quais fui brindado nos treze anos e três meses que
estive no pastorado daquela igreja. E os fatos serão narrados não na exata ordem
em que aconteceram, mas aleatoriamente. Na primeira dessas ocorrências, escolhi
o momento quando a morte soprou na minha direção. E quem estava comigo na ocasião
era justamente a irmã Zélia. E não
somente ela, mas também Zacarias Nazário, Lídia e Severino Laurindo, que sempre
me acompanhavam nas visitas que fazia aos domingos à tarde, no único dia e
horário disponíveis para tal atividade.
Eu possuía um Chevette 1981, adquirido
no ano em que nasceu minha filha Raquel. Ele era de cor cinza e sem o conforto
de um sistema de ar condicionado. O jeito era apelar para a climatização
externa, que vinha com rajadas de vento desarrumando o cabelo das pessoas que
se comprimiam no pequeno espaço. A solução para tentar evitar a desarrumação,
era fechar um pouco os vidros das janelas a fim de dar uma trégua, e, por outro
lado, suportar o aumento de temperatura. Apesar disso, a tarefa era muito
agradável, inclusive pelo fato da alegre conversa que se desenrolava durante o
trajeto de cada visita.
Naquele domingo fomos
ao Hospital de Paulista, que fica a cerca de 20 km de Recife, visitar a alguém
da igreja que estava hospitalizado. Ao terminar a visita, voltamos em direção a
Recife, por uma estrada que, na época, era de mão dupla. Com o trânsito um
tanto intenso, chegou o momento quando o Chevette ia à frente de todos os
demais veículos. Estava imensa a fila na retaguarda, pois o trânsito no sentido
contrário nem sempre dava chances de ultrapassagem, como era o caso naquele
exato momento.
Com os vidros das
janelas ligeiramente abertos, senti, de repente, assim como que um vento forte
passando bem perto do meu ouvido esquerdo, quer dizer, na lateral esquerda do
Chevette, que foi balançado como que ficando numa espécie de desequilíbrio. Mas
tudo foi muito sutil e quase imperceptível. Logo em seguida, verificamos que
tinha sido um Fusquinha que passara ao nosso lado, em altíssima velocidade e ziguezagueando
no asfalto.
Bem mais adiante
havia um ônibus estacionado no acostamento do lado direito da pista, no sentido
que trafegávamos. Assim num abrir e fechar de olhos, o fusquinha começou a se
desgovernar, como se tivesse sido brecado de repente, e rodopiar como se fosse
voltar em nossa direção. A essa altura eu já fui me precavendo, diminuindo a
velocidade e colocando o carro para o acostamento, e com todos os demais
veículos à retaguarda.
Continuamos dentro
do carro. Notamos, então, que o fusquinha deu meia volta, foi na direção do
ônibus, bateu fortemente na lateral, deixando um imenso buraco na lataria e, aí
sim, ficando de frente para nós e como que vindo em nossa direção. Já estava
amassado feito um maracujá. Parou bruscamente a poucos metros depois que mudou
a direção na pista e a uma boa distância de onde estávamos. A essa altura já
sem para-brisa, que quebrara com o tremendo impacto, com a porta do lado
direito aberta e a pessoa que vinha no banco caída no asfalto. Soubemos, ainda,
que um garoto que ia no banco traseiro foi arremessado através do para-brisa
quebrado e jogado fora da pista.
Naquele
momento, quando o iminente perigo já havia passado, alguém chegou ao meu lado,
que ainda estava dentro do Chevette e com a porta fechada, e foi argumentando:
‒ “O senhor notou? Vocês tiveram o maior livramento da vida agora. O Fusquinha
vinha na direção da lateral do seu carro, e desviou em cima da hora. Caso se
chocasse, teria arrebentado seu carro e acabado com vocês”. Diante daquela
declaração me veio à mente o sopro de vento que senti momentos antes e o
ligeiro desequilíbrio do Chevette.
Passado o susto, mas com meu coração ainda acelerado, saímos do carro. Fui verificar o que ocorrera. Pensei encontrar a lataria de alguma maneira danificada. E por mais que procurasse nada encontrava que justificasse o que ocorrera com aquela meteórica passagem do fusquinha. Insisti na procura, e nada. Até que alguém notou uma pequena peça no asfalto. Era a polaina esquerda do para-choque traseiro. Uma peça tão diminuta que quase não foi percebida. O Fusquinha passara tão perto do Chevette, que arrancara apenas a polaina e não danificou o carro em nada mais. Não houve um pequeno arranhão sequer.
Esperamos que o carro fosse removido e o trânsito liberado, para continuar a viagem de volta para Beberibe. Dias depois soubemos que os dois ocupantes adultos, inclusive o motorista, estavam bêbados. Como resultado do impacto contra o ônibus, o que ocupava o banco dianteiro reservado ao passageiro caiu com o rosto no asfalto quando a porta abriu e morreu na hora. O motorista e o garoto sobreviveram. E nós, os cinco ocupantes do Chevette cinza, também escapamos por um triz do sopro do vento da morte.
[i]
Cosma estava grávida de Raquel, que nasceu em 19/09/1981.