domingo, 3 de outubro de 2021

ESCARAMUÇAS DE UM DUELO ENTRE DOIS GIGANTES

 

FOTO 1 ‒ Kyle muito confortável sob os cuidados da linda, querida e cuidadosa mamãe.



ESCARAMUÇAS DE UM DUELO ENTRE DOIS GIGANTES [i]

enivaldo ufino

Aquele domingo 09/09/2007 estava ensolarado e deslumbrante em São José dos Campos, SP. Anilma chegara dos Estados Unidos, com o esposo Clay e o filho Kyle que, na época, beirava a casa dos dois anos de idade [ii]. Trocando em miúdos: ele estava com um ano, onze meses e seis dias. Ou, então, por outro prisma: faltavam vinte e quatro dias para o garoto guerreiro completar dois anos de idade. Seu avô Raimundo e sua avó Anita, estavam muito felizes com a chegada dos três: da filha, do genro e do netinho. Estavam tão felizes que resolveram brindar a felicidade oferecendo um suntuoso almoço em homenagem aos recém-chegados, para o qual convidaram alguns de seus familiares. E de Guarulhos lá fomos nós: o autor, seu irmão, Regi (Reginaldo), e sua cunhada, Jeanete, que ainda não conheciam o little and handsome boy (pequeno e belo garoto), e nem seu simpático pai. A barreira da língua não foi empecilho para uma agradável comunicação, inclusive com o pequerrucho de mãe brasileira e pai americano.

Os quitutes servidos no almoço estavam deliciosos. O tempero especial da festa era a simpatia e indisfarçável alegria dos queridos anfitriões, que coroava a felicidade de todos. Os convivas somavam uma pequena multidão, da qual fazia parte um número razoável de crianças, inclusive Ítalo, sobrinho-neto do autor, que estaria aniversariando dois dias depois, no 11 de setembro, quer dizer, vinte e dois dias antes de Kyle. E o autor – que pesquisava e estudava justamente a infância no livro primeiro das Confissões, de Agostinho de Hipona –, estava de olho naquela turminha de pouca estatura, pouca idade e muita dependência e fragilidade, pois, como diz Agostinho, é nas coisas pequenas que observamos “as noções comuns às pequenas e às grandes coisas”. E o que ele observou naquele dia merece um registro para a posteridade.

À primeira vista, tudo parecia muito paradoxal, com dois mundos distintos insistindo em ocupar o mesmo espaço físico: de um lado, os adultos tratando dos seus negócios, do outro lado – e ali mesmo, numa mistura inseparável –, as crianças tratando também de seus negócios, isto é, de suas brincadeiras [iii]. O lúdico parecia estar presente apenas no mundo infantil. E eles, os menores, comandavam a festa das brincadeiras, do barulho, da alegria totalmente descontraída, quer entre eles mesmos, quer investindo e conseguindo de vez em quando a participação de um daqueles adultos tão ocupados.

Notei que todas as crianças estavam descalças, exceto uma: Kyle. Observei, ainda, que o espaço muito bem cuidado da área exterior e do jardim da casa, não oferecia perigo algum à fragilidade dos membros infantis. Fiel à imitação própria das crianças – e muitas vezes também dos adultos –, ele resolve se desfazer das alpercatas. O calçado era bonito, cômodo, apropriado em termos de segurança, mas naquele momento nada disso funcionava. Agora era tempo de cair na estripulia que tomava conta de todos e ficar igual aos demais. Quer dizer: livrar-se daquela incômoda invenção humana para proteger os pés. Era o espontâneo ato do mimetismo da alma infantil no comando do corpo. Era a vontade do querer da criança, que sempre apela tão forte aos ouvidos e razão do adulto, que naquele momento não oferecia o mínimo perigo aos pés do simpático little boy (pequeno garoto).

E o que vejo a seguir? O começo de uma guerra – a princípio um tanto silenciosa e nada belicosa –, abrindo espaço no meio daquela barulhenta paz e algazarra da alegria dos jogos infantis. Kyle não está mais sozinho no meio dos seus pares, pois papai Clay veio ficar de cócoras pertinho dele. Noto que os dois conversam – em inglês, claro! –, mas não escuto o conteúdo da conversa, pois estou um pouco distante. Posso me colocar apenas como aquele que observa e imagina. De uma coisa estava certo: ele queria ficar descalço como as demais crianças. Assim começa a luta entre aqueles dois gigantes tão diferentes um do outro, apesar de tão similares quanto à natureza. Parecem até dois outros mundos dentro daquela duplicidade de mundos: de um lado, o garoto que quer se livrar do calçado, do outro, o carinho e o cuidado do pai ao emitir o preceito para aquele momento, sob a tutela da autoridade paterna: sob o ponto de vista deste, não era aconselhável Kyle ficar descalço.

A essa altura do desenrolar daquela guerra nada fria eu já não tinha dúvidas, pois agora ela tomara aspectos teatrais, através de gestos, contrações faciais e até choro: Kyle quer ficar descalço, Clay quer que ele continue calçado. São duas vontades que colidem num arroubo volitivo, só que não na mesma pessoa, mas em duas pessoas diferentes: uma quer uma coisa, outra quer outra coisa. Kyle quer ficar descalço, Clay quer que ele não queira ficar descalço. Naquele instante, estão em mundos diferentes. São dois gigantes que se digladiam num conflito sem aparato bélico, porém com o poder das armas retóricas, apesar do diminuto domínio intelectual da fala de que dispõe um daqueles fortes guerreiros.                     

Às vezes a vontade entra em choque na alma da mesma pessoa, isto é, no chamado homem interior, quando quer ao mesmo tempo duas coisas diferentes e contraditórias. Quer exatamente aquilo que não deve querer e não quer aquilo que deve querer. Este é um tipo de conflito familiar a muitos de nós, senão a todos. Quem dá uma ideia disso é o poeta latino Ovídio (43 a.C.‒18 d.C., 61), quando afirma o seguinte: “Vejo o melhor, aprovo, e sigo o pior ‒ uideo meliora proboque deteriora sequor” [iv].

Voltando ao relato após essa aparente digressão, vamos encontrar a cena alterada pelo beligerante mais novo. O poder retórico da argumentação adulta não foi suficiente para alterar sua vontade, que reage com vigor, rompendo o silêncio no meio daquela algazarra: começa a chorar e a tirar, ele mesmo, aquela coisa desagradável dos pés. Agora tudo fica ainda mais engraçado, pois na tentativa de se livrar do calçado, um dos pés fica preso apenas pelo calcanhar, com todos os dedos de fora, brincando num gostoso movimento e em gozo de total liberdade. Naquele jogo infantil, o desafio estava posto com muita clareza, pois é como se ele dissesse ao pai: quero liberdade para os meus dois pés. Nesse ínterim, eu me perguntava: qual dos dois gigantes sairá vitorioso? E que bom observar tudo aquilo tão minuciosamente como eu observava. Ainda mais quando o tamanho de um dos gigantes era tão pequeno em estatura quanto um pequeno polegar. Mas naquela arena ele se agiganta com as armas da vontade de querer, sem se deixar levar pelos argumentos retóricos e pelos contraditórios encantos. Ele quer porque quer, e ponto final.  

Os intensos movimentos corporais comandados pelas afecções bem ordenadas da alma em ebulição ‒ forma de argumento pela carência de maiores poderes racionais ‒, em nada contribuem para convencer o sólido aparato conceitual do pai. Este, ainda agachado, age com muita cautela e paciência ao colocar o resto do pé do filho para dentro da alpercata. Levanta, sai com ele nos braços e, de soslaio, noto lágrimas nos olhos e as faces ruborizadas do garoto, em contraste com a placidez, segurança e tranquilidade do rosto paternal. Pensei comigo, mais uma vez: nesta guerra de vontades, parece que o pai saiu vitorioso. Será que saiu? Nem tudo é o que parece, ainda mais quando se trata de pequenas pessoas, porém não tão pequenas quanto parecem. Ali se concretiza o que Agostinho recomenda, isto é, que devemos observar nas coisas pequenas as noções comuns às pequenas e às grandes coisas. Ao observar momentos depois o alegre, descontraído e barulhento bando de crianças em suas brincadeiras infantis, vi Kyle pulando alegre entre seus pequenos companheiros, sorrindo, feliz da vida e... descalço!




GALERIA DE FOTOS

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FOTO 2 ‒ Kyle se diverte na praia de Boa Viagem ao lado de papai e mamãe.
FOTO 3 ‒ Kyle se torna minúsculo diante da grandiosidade da natureza.

FOTO 4 ‒ Onde o garoto vai, sempre encontra facilidade de lidar com esses pequenos animais.

FOTO 5 ‒ A vontade de querer de Kyle submete até a pequenina lagartixa: ela vai aonde ele quiser que vá.
FOTO 6 ‒ Kyle e Tiago se divertem na praia de Boa Viagem, Recife, PE.

FOTO 7 ‒ Os priminhos Kyle, Tiago e Guilherme, em Campina Grande, PB.

FOTO 8 ‒ De passagem por Campina Grande, a vovó e a mãe de Kyle (Anita e Anilma) encontram Nicinha e Luza.

FOTO 9 ‒ O centro das atenções é Kyle e sua maestria em capturar e lidar com uma pequenina lagartixa.

FOTO 10 ‒ Aí está o resultado do esforço do garoto: uma lagartixinha muito dócil.
FOTO 11 ‒ De Campina Grande vieram a Recife, para visitar Kyle e sua comitiva: Davi, Myrtes, Lula e Luza.
FOTO 12 ‒ A alegria aqui tomou conta de todo mundo! Clay, Anilma e sua prima Mercinha (Erimércia), Émerson, Kyle, Thales e Ítalo.

FOTO 13 ‒ Kyle cresceu e apareceu. Eis aí o nosso querido adolescente em 2021.



NOTAS

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[i] Este artigo foi escrito em 2007, quando o autor ainda estava fazendo o doutorado em São Paulo.

[ii] Kyle Freire Lofgren (03/10/2005), sobrinho-neto do autor, é filho de Anilma Souza Freire (06/09/1967) e John Clay Lofgren (07/11/1956), cujo casamento ocorreu em 04/08/2002.

[iii] Agostinho diz que as brincadeiras dos adultos chamam-se negócios e as das crianças, sendo tão importante quanto, é castigada pelos adultos: “Mas as brincadeiras dos adultos chamam-se negócios, ao passo que as das crianças, sendo a mesma coisa, são castigadas pelos adultos, e ninguém se compadece das crianças, nem daqueles nem de ambos ‒ sed maiorum nugae negotia uocabantur, puerorum autem talia cum sint, puniuntur a maioribus, et nemo miseratur pueros uel illos uel utrosque” (conforme Confissões I ix 15).

[iv] OVÍDIO. Metamorfoses VII xx 21; observe, ainda, o que diz Agostinho, já convertido ao cristianismo, em Confissões X xxxii 48, num linguajar em que utiliza até palavras similares às usadas por Ovídio: “[...] e ninguém deve ter a certeza nesta vida – que toda ela é chamada uma provação – se aquele que pôde de pior tornar-se melhor, de melhor não se tornará pior – et nemo securus esse debet in ista uita, quae tota temptatio nominatur, utrum qui fieri potuit ex deteriore melior, non fiat etiam ex meliore deterior”.