ESCARAMUÇAS DE UM
DUELO ENTRE DOIS GIGANTES [i]
ℛenivaldo
ℛufino
Aquele domingo 09/09/2007 estava ensolarado e deslumbrante em
São José dos Campos, SP. Anilma chegara dos Estados Unidos, com o esposo Clay e
o filho Kyle que, na época, beirava a casa dos dois anos de idade [ii].
Trocando em
miúdos: ele estava com um ano, onze meses e seis dias. Ou, então, por outro
prisma: faltavam vinte e quatro dias para o garoto guerreiro completar dois anos de idade. Seu avô Raimundo e sua avó Anita,
estavam muito felizes com a chegada dos três: da filha, do genro e do netinho.
Estavam tão felizes que resolveram brindar a felicidade oferecendo um suntuoso
almoço em homenagem aos recém-chegados, para o qual convidaram alguns de seus
familiares. E de Guarulhos lá fomos nós: o
autor, seu irmão, Regi (Reginaldo), e sua cunhada, Jeanete, que ainda não conheciam
o little and handsome boy (pequeno e
belo garoto), e nem seu simpático pai. A barreira da língua não foi empecilho
para uma agradável comunicação, inclusive com o pequerrucho de mãe brasileira e
pai americano.
Os quitutes
servidos no almoço estavam deliciosos. O tempero
especial da festa era a simpatia e indisfarçável alegria dos queridos
anfitriões, que coroava a felicidade de todos. Os convivas somavam uma pequena
multidão, da qual fazia parte um número razoável de crianças, inclusive Ítalo, sobrinho-neto
do autor, que estaria aniversariando dois dias depois, no 11 de setembro, quer
dizer, vinte e dois dias antes de Kyle. E o autor – que pesquisava e estudava justamente
a infância no livro primeiro das Confissões,
de Agostinho de Hipona –, estava de olho naquela turminha de pouca estatura,
pouca idade e muita dependência e fragilidade, pois, como diz Agostinho, é nas
coisas pequenas que observamos “as noções comuns às pequenas e às grandes
coisas”. E o que ele observou naquele dia merece um registro para a
posteridade.
À primeira vista,
tudo parecia muito paradoxal, com dois mundos distintos insistindo em ocupar o
mesmo espaço físico: de um lado, os adultos tratando dos seus negócios, do outro lado – e ali mesmo,
numa mistura inseparável –, as crianças tratando também de seus negócios, isto
é, de suas brincadeiras [iii].
O lúdico parecia estar presente apenas no mundo infantil. E eles, os menores,
comandavam a festa das brincadeiras, do barulho, da alegria totalmente
descontraída, quer entre eles mesmos, quer investindo e conseguindo de vez em
quando a participação de um daqueles adultos tão ocupados.
Notei que todas as
crianças estavam descalças, exceto uma: Kyle. Observei, ainda, que o espaço muito
bem cuidado da área exterior e do jardim da casa, não oferecia perigo algum à
fragilidade dos membros infantis. Fiel à imitação própria das crianças – e
muitas vezes também dos adultos –, ele resolve se desfazer das alpercatas. O
calçado era bonito, cômodo, apropriado em termos de segurança, mas naquele
momento nada disso funcionava. Agora era tempo de cair na estripulia que tomava
conta de todos e ficar igual aos demais. Quer dizer: livrar-se daquela incômoda
invenção humana para proteger os pés. Era o espontâneo ato do mimetismo da alma
infantil no comando do corpo. Era a vontade do querer da criança, que sempre
apela tão forte aos ouvidos e razão do adulto, que naquele momento não oferecia
o mínimo perigo aos pés do simpático little
boy (pequeno garoto).
E o que vejo a
seguir? O começo de uma guerra – a
princípio um tanto silenciosa e nada belicosa –, abrindo espaço no meio daquela
barulhenta paz e algazarra da alegria dos jogos infantis. Kyle não está mais
sozinho no meio dos seus pares, pois papai Clay veio ficar de cócoras pertinho
dele. Noto que os dois conversam – em inglês, claro! –, mas não escuto o
conteúdo da conversa, pois estou um pouco distante. Posso me colocar apenas como
aquele que observa e imagina. De uma coisa estava certo: ele queria ficar
descalço como as demais crianças. Assim começa a luta entre aqueles dois
gigantes tão diferentes um do outro, apesar de tão similares quanto à natureza.
Parecem até dois outros mundos dentro daquela duplicidade de mundos: de um
lado, o garoto que quer se livrar do
calçado, do outro, o carinho e o cuidado do pai ao emitir o preceito para
aquele momento, sob a tutela da autoridade paterna: sob o ponto de vista deste,
não era aconselhável Kyle ficar descalço.
A essa altura do
desenrolar daquela guerra nada fria eu
já não tinha dúvidas, pois agora ela tomara aspectos teatrais, através de
gestos, contrações faciais e até choro: Kyle quer ficar descalço, Clay quer que
ele continue calçado. São duas vontades que colidem num arroubo volitivo, só
que não na mesma pessoa, mas em duas pessoas diferentes: uma quer uma coisa,
outra quer outra coisa. Kyle quer ficar descalço, Clay quer que ele não queira
ficar descalço. Naquele instante, estão em mundos diferentes. São dois gigantes que se digladiam num conflito
sem aparato bélico, porém com o poder das armas retóricas, apesar do diminuto
domínio intelectual da fala de que dispõe um daqueles fortes guerreiros.
Às vezes a vontade
entra em choque na alma da mesma pessoa, isto é, no chamado homem interior, quando quer ao mesmo
tempo duas coisas diferentes e contraditórias. Quer exatamente aquilo que não
deve querer e não quer aquilo que deve querer. Este é um tipo de conflito
familiar a muitos de nós, senão a todos. Quem dá uma ideia disso é o poeta
latino Ovídio (
Voltando ao relato
após essa aparente digressão, vamos encontrar a cena alterada pelo beligerante
mais novo. O poder retórico da argumentação adulta não foi suficiente para
alterar sua vontade, que reage com vigor, rompendo o silêncio no meio daquela
algazarra: começa a chorar e a tirar, ele mesmo, aquela coisa desagradável dos
pés. Agora tudo fica ainda mais engraçado,
pois na tentativa de se livrar do calçado, um dos pés fica preso apenas pelo
calcanhar, com todos os dedos de fora, brincando num gostoso movimento e em
gozo de total liberdade. Naquele jogo infantil, o desafio estava posto com muita clareza, pois é
como se ele dissesse ao pai: quero liberdade para os meus dois pés. Nesse
ínterim, eu me perguntava: qual dos dois gigantes sairá vitorioso? E que bom
observar tudo aquilo tão minuciosamente como eu observava. Ainda mais quando o
tamanho de um dos gigantes era tão
pequeno em estatura quanto um pequeno polegar. Mas naquela arena ele se
agiganta com as armas da vontade de querer, sem se deixar levar pelos
argumentos retóricos e pelos contraditórios encantos. Ele quer porque quer, e
ponto final.
Os intensos
movimentos corporais comandados pelas afecções bem ordenadas da alma em
ebulição ‒ forma de argumento pela carência de maiores poderes racionais ‒, em
nada contribuem para convencer o sólido aparato conceitual do pai. Este, ainda
agachado, age com muita cautela e paciência ao colocar o resto do pé do filho
para dentro da alpercata. Levanta, sai com ele nos braços e, de soslaio, noto
lágrimas nos olhos e as faces ruborizadas do garoto, em contraste com a
placidez, segurança e tranquilidade do rosto paternal. Pensei comigo, mais uma
vez: nesta guerra de vontades, parece que o pai saiu vitorioso. Será que saiu?
Nem tudo é o que parece, ainda mais quando se trata de pequenas pessoas, porém
não tão pequenas quanto parecem. Ali se concretiza o que Agostinho recomenda,
isto é, que devemos observar nas coisas pequenas as noções comuns às pequenas e
às grandes coisas. Ao observar momentos depois o alegre, descontraído e
barulhento bando de crianças em suas brincadeiras infantis, vi Kyle pulando
alegre entre seus pequenos companheiros, sorrindo, feliz da vida e... descalço!
GALERIA DE FOTOS
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FOTO 9 ‒ O centro das atenções é Kyle e sua maestria em capturar e lidar com uma pequenina lagartixa.
FOTO 13 ‒ Kyle cresceu e apareceu. Eis aí o nosso querido adolescente
em 2021.
NOTAS
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[i] Este artigo foi escrito em 2007, quando o autor ainda estava fazendo o doutorado em São Paulo.
[ii] Kyle Freire Lofgren
(03/10/2005), sobrinho-neto do autor, é filho de Anilma Souza Freire (06/09/1967)
e John Clay Lofgren (07/11/1956), cujo casamento ocorreu em 04/08/2002.
[iii] Agostinho diz que as brincadeiras dos adultos chamam-se negócios e as das crianças, sendo tão importante quanto, é castigada pelos adultos: “Mas as brincadeiras dos adultos chamam-se negócios, ao passo que as das crianças, sendo a mesma coisa, são castigadas pelos adultos, e ninguém se compadece das crianças, nem daqueles nem de ambos ‒ sed maiorum nugae negotia uocabantur, puerorum autem talia cum sint, puniuntur a maioribus, et nemo miseratur pueros uel illos uel utrosque” (conforme Confissões I ix 15).
[iv] OVÍDIO. Metamorfoses VII xx 21; observe, ainda, o que diz Agostinho, já
convertido ao cristianismo, em Confissões
X xxxii 48, num linguajar em que utiliza até palavras similares às usadas por
Ovídio: “[...] e ninguém deve ter a certeza nesta vida – que toda ela é chamada uma provação – se aquele que pôde de pior tornar-se melhor, de
melhor não se tornará pior – et nemo
securus esse debet in ista uita, quae tota temptatio nominatur, utrum qui fieri potuit ex deteriore melior, non fiat etiam
ex meliore deterior”.