domingo, 5 de setembro de 2021

CRIANÇA NÃO MENTE


FOTO 1 ‒ 31/05/2008: Aí estou eu, pequeno amigo da sabedoria, que um mês antes resistira bravamente aos ataques da contradição.

CRIANÇA NÃO MENTE [i]

enivaldo ufino

“Assim são as crianças, como depois pude observar. Sem saber, elas me informaram mais daquilo que eu tinha sido, do que o saber dos meus educadores” (Confissões, I, vi, 8).

“[...] e justamente nos meus pequenos pensamentos sobre pequenas coisas, deleitava-me com a verdade” (Confissões I, xx, 31).

Faltavam apenas dezesseis dias para Alex [ii] completar três anos de idade. Era um pingo de gente. A festa naquele domingo, 27/04/2008, tinha dois motivos: inaugurar a nova casa adquirida por Émerson e minha sobrinha Erimércia Freire, e comemorar a chegada de minha filha, Raquel, de passagem para Serra Negra, SP, onde participaria de um Congresso de Engenharia Ambiental.

O mistério do saboroso churrasco que nos tentava a comer com avidez estava nas hábeis mãos de Émerson, que não parava de nos oferecer e empanturrar com aquela delícia. As demais iguarias servidas após o almoço, também tentadoras, ficaram por conta da participação de mãos não menos hábeis, que para lá se deslocaram levando sua singela cooperação ao encontro tão especial promovido pelo querido casal.

Éramos vinte e duas pessoas ao todo [iii], entre crianças e adultos. Dessa vez captei algumas coisas observando o comportamento e os hábitos das crianças ali presentes, mas os dados precisos da primeira luta de não-contradição me foram repassados, como dádiva, por uma preciosa informação de Ricardo, que ainda era noivo de minha sobrinha Lyz – apelido afetivo de Lyzandra Freire – e que brindou a todos que estávamos na sala naquele momento. Nem imaginava ele o profundo valor filosófico que se escondia por trás do seu relato tão rico de detalhes e, como se não bastasse, na presença do personagem central daquela trama.

Foi muito divertido – e até mesmo engraçado – acompanhar a maneira como Ricardo chegou à sala e armou o palco para seu relato. Ele, o narrador aparentemente tagarela, de gestos teatrais, e Titico Algodão como pivô de toda aquela encenação, baseada em fatos reais e, para dar maior dramaticidade, todos eles recentíssimos. Utilizando o poder persuasivo da palavra autoritária de tio afim – como adulto que já tem pleno domínio intelectual da fala –, convoca de forma sucinta: – “Senhor Alex, venha cá!” A postura é de uma plasticidade encantadora e, ao mesmo tempo, teatral: quando a convocação é atendida e aquele pingo de gente se aproxima, Ricardo coloca a mão direita sobre a cabeça da criança, aumentando ainda mais a diferença entre suas estaturas e a fragilidade do menor, e de lá do alto de sua excelsa posição, argumenta em tom taxativo: – “Senhor Alex, diga, agora, quem é que lhe bateu, diga!” Em seguida, conta como tudo aconteceu. E ele ficou ali, paradinho, como que petrificado, escutando o relato.

Alguns adultos estão conversando na calçada. Com o portão da garagem aberto, Alex aparece por lá de mansinho, assim como quem não quer nada, mas querendo tudo. Temeroso com sua segurança e precavido diante de algum imprevisto, Ricardo adverte ao pequeno: – “Cuidado, Alex, não vá para a rua, pois é perigoso por causa do movimento dos carros. Entre, é melhor você entrar”. Sabe-se lá como é que ele recebeu e entendeu, no íntimo de sua alma infantil, esse complicado e difícil linguajar de gente grande. Ou, talvez até entendera tudo, mas sua vontade de querer, naquele momento, não o direcionava a uma obediência irrestrita e passiva ao preceito que lhe vinha daquela ordem lá do alto. E com vocabulário e criatividade razoável para uma criança da sua idade, enfrenta seu conselheiro maior com estas palavras: – “Vou dizer à mamãe que você me bateu”. Realmente, uma ideia genial para sair daquele sufoco e se safar de uma indesejável ordem, vinda de alguém que nem seu pai era. Quem sabe, talvez no íntimo, no íntimo mesmo, ele nem quisesse contar aquilo para sua mãe, mas se sentir tão livre quanto aqueles adultos – como o próprio autor do preceito – e continuar ali na calçada, sim, desfrutando de uma liberdade própria de gente que pensa que é grande e sabe onde fica o nariz.

Aquela alma racional em estado inicial – como escreve a querida colega Cristiane Abbud em seu excelente texto de doutoramento na USP –, e sem nenhum domínio intelectual da palavra por ela mesma proferida – diferentemente do seu interlocutor –, só não contava com uma coisa: que a lógica de sua inteligente argumentação e a força dramática da violência praticada, cairia por terra de um só golpe, pois se tratava de uma contradição. Dito com outras palavras, sua pequena frase não era verdadeira, pois ninguém lhe batera. E agora, como sair desse labirinto e assumir uma postura de não-contradição? Essa missão seria quase impossível, pois era tão pequena a sua cabeça e, além do mais, estava com aquela imensa mão sobre ela, como se fora a ameaçadora espada de Dâmocles (séc. V-IV a.C.). E, para complicar ainda mais o quadro já estarrecedor, a lógica da conclusão daquele opositor estava irretorquível, pois nela não havia nenhuma contradição. E agora, o que fazer, como sair dessa?

A mão de Ricardo continua posta sobre a cabeça de Alex, com um peso ameaçador. Ameaça maior, porém, é o daquela frase que paira no ar: – “Senhor Alex, diga, agora, quem é que lhe bateu, diga!” O espírito santo da mãe estava ali presente em pessoa, vendo e ouvindo tudo. Os olhos de Lu – apelido afetuoso de mamãe Luciana – se fixaram no filho. Os meus olhos e a minha atenção também se fixaram nele, pois estava curioso para saber qual seria o desfecho daquela luta por uma postura não contraditória. E assim estavam os olhos e a atenção de todos naquela sala. O que fazer diante de um confronto desses? Àquela altura Ricardo já dera uma trégua e retirara sua mão estrategicamente. As palavras, entretanto, não paravam de ecoar lá dentro: – “Vamos lá, senhor Alex, diga, agora, quem é que lhe bateu, diga!” De forma brilhante e com um propósito firme na sua vontade de querer, mesmo sem ter consciência disso, resolve tomar o caminho do bom senso que é o da não-contradição, mesmo que isso pareça uma perda: sem dizer uma palavra sequer, sem esboçar um gesto de resistência, retira-se da sala, coçando a cabeça! A cena é simplesmente deslumbrante!

Aquele era o dia de Titico Algodão ser testado na prática da sua lógica, pois mais uma vez surge diante dele o poder argumentativo das palavras de um adulto, na pessoa do meu irmão e seu tio-avô Raimundo Freire, que viera de São José dos Campos juntamente com a esposa, Anita, a nora, Eliana, e a neta, Ana Júlia. Eu mesmo observei e acompanhei cada detalhe dos acontecimentos.

Algumas crianças estão ao lado de Raimundo, inclusive Alex, e cada uma saboreando seu delicioso churrasquinho. Não precisa dizer onde se concentrava a atenção e a vontade do querer de todos e não apenas das crianças: em degustar aquela delícia servida por Émerson. Pois bem, de repente meu irmão pede o churrasquinho de Alex, que nega peremptoriamente. Diz ele: – “Não”! Mesmo sem desfrutar do uso pleno da razão de um adulto e sem utilizar verbo, como fazemos muitos de nós quase sempre, o que o pequeno quis dizer foi: – “Não dou, não”!

O tio-avô adulto e do alto de sua experiente inteligência de cerca de sete décadas de vida, não fica convencido diante da negativa e utiliza um poderoso recurso argumentativo, de fundo filosófico, que é o do exemplum. Pede o churrasquinho de um companheiro e primo de Alex, que está ali ao lado dele: Thales – sete meses e dezesseis dias para completar três anos de idade –, que, sem resistir ao pedido e desprovido, naquele momento, do egoísmo tão característico de crianças e adultos, entrega seu delicioso pitéu. Faltava apenas isso para mais uma investida do arguto raciocínio do tio-avô: – “Tá vendo aí, Alex, Thales me deu o churrasco dele! Agora me dê o seu”. Certamente, ele não contava com o fato de que essa era a segunda investida, naquele dia, contra alguém já famoso pela sua postura de não-contradição. Para desespero do tio-avô – que parecia tão entregue ao vício da gula – e para salvar uma vez mais a pele do nosso herói em sua habitual coerência, o garoto enfatiza sua resposta, como quem se perguntasse se o tio ainda não entendera o que ele dissera há poucos instantes: – “Não”! E eu, vibrando com tudo aquilo e já prevendo que a vitória no ringue seria daquela alma tão frágil no uso intelectual da fala e, por isso mesmo, no uso da lógica no discurso, observo que o tio-avô insiste, insiste, mas nada consegue além da negativa, mil vezes repetida. E assim, o garoto sai de novo de uma situação embaraçosa e aparentemente difícil, com uma congruente postura de quem não está a fim de se contradizer.


GALERIA DE FOTOS

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FOTO 2 ‒ Concentrava minha atenção em algum ponto imaginário como se fora um pensador adulto. Era só aparência!

FOTO 3 ‒ Caí no sono! Diante dessa linda cena, meu querido Txio Reni Babudo escreveu: “Dorme, pequena alma em estado inicial, pois aqueles que te amam velam pelo teu sono”. Aí me lembrei de uma canção que os frades cantavam para Marcelino dormir. Só sei disso, porque o próprio Txio Reni me falou do filme "Marcelino, pão e vinho".

FOTO 4 ‒ 16/05/2010: Txio Reni Babudo ao lado dos seus três sobrinhos-netos que aguçaram sua inspiração e produção filosófica com base em Agostinho de Hipona (354-430, 75), sendo, da esquerda para a direita: eu e meus queridos priminhos Thales e Ítalo.

FOTO 5 ‒ 27/11/2010: Nesta foto eu já estou quase um rapazinho, posando na parte externa da casa dos meus avós em Guarulhos, para txio Reni Babudo congelar e preservar minha imagem para o futuro, para este futuro que já se fez presente e passado, e para os próximos futuros.

FOTO 6 ‒ 20/11/2007: Eu adorava essa cama, no quarto que Vovó preparou para Txio Reni trabalhar no seu projeto e também repousar, claro!

FOTO 7 ‒ 20/11/2007: Eu me esbaldava à vontade, sem perturbar e sem ser perturbado.

FOTO 8 ‒ 27/03/2010: Estou muito bem aqui!

FOTO 9 ‒ 12/07/2009: É, não teria mesmo como mentir [iv], pois me tornei amante da sabedoria.

FOTO 10 ‒ 15/11/2007: Ora, todo amante da sabedoria tem direito a folgas e brincadeiras!

FOTO 11 ‒ Que pingo de gente que eu era! Aqui, caminho em passos ainda vacilantes ao encontro da querida Titia Lilica.

FOTO 12 ‒ 27/12/2010: Estou muito orgulhoso ao lado de Papai, Mamãe e Vovó!



FOTO 13 ‒ Felicidade dobrada, ao lado de Vovô e Mamãe!

FOTO 14 ‒ 27/03/2010: Txio Reni sempre contava comigo para ajudá-lo nas difíceis pesquisas do doutorado. Aos poucos fui aprendendo a filosofar.

FOTO 15 ‒ Papai todo feliz com o gatinho! Mas a felicidade maior da vida dele sempre foi o gatinho aqui!

FOTO 16 ‒ 14/06/2008: Vovô todo sorridente com minhas primeiras peripécias na moto (pelo menos, capacete eu já sabia usar)!

FOTO 17 ‒ 16/05/2010: Foi muita alegria no meu aniversário, com a ajuda de Tio Rodolfo, e ao lado de minha querida Mãe e minha inesquecível Vovó Nilza.

FOTO 18 ‒ 16/05/2009: Aqui eu me faço acompanhar da minha querida tia-avó Neuza e do meu Txio Reni, aliás, eu venho errando desde o começo, pois ele é meu tio-avô, mas acostumei a chamar de txio mesmo.

FOTO 19 ‒ E quase num piscar de olhos, fiquei assim... Estava virando gente grande!

FOTO 20 ‒ 2021: E agora estou assim: com 16 anos, mais de um metro e oitenta de altura e, como sempre, muito concentrado nas pesquisas e nos estudos.
FOTO 21 ‒ 2021: E, para finalizar, finalizar?, apresento-lhes Jamile, minha querida namorada.
FOTO 22 ‒ 19/07/2008: Ah, pensou que eu iria esquecer, era? Mas de jeito nenhum! E Txio Reni bateu essa foto de propósito: primeiro para mostrar a beleza do casamento de Titia Lilica com Ricardo, e, segundo, para que eu a usasse para mostrar a cara de menino maroto daquele grandalhão que me provocou após o meu deslize com a pequena mentira que eu nem queria contar, pois eu sei que criança não mente!



[i] “O princípio da não-contradição foi (primeiramente) formulado por Aristóteles e diz-nos que uma proposição verdadeira não pode ser falsa e uma proposição falsa não pode ser verdadeira. Nenhuma proposição (na lógica clássica), portanto, pode ser os dois ao mesmo tempo”. Algoritmo do Google.   

Originalmente com o título de Filosofia do cotidiano infantil, este artigo foi um dos muitos que fiz durante o período dos meus estudos em São Paulo, de julho de 2003 a fevereiro de 2011. Minha tentativa era extrair ideias filosóficas do cotidiano de cinco dos meus sobrinhos-netos, todos ainda na fase infantil.

[ii] Alex Pereira Freire (13/05/2005), meu sobrinho-neto, filho de Alex e Luciana e neto de Reginaldo e Jeanete.

[iii] Do tamanho da caravana da Jubaíba que esteve presente ao 10º Congresso da Juventude Batista Brasileira, em Recife, no ano de 1974, conforme artigo publicado neste Blog, em 06/06/2021.

[iv] “Se Deus é criança, pois jamais mente, a criança é Deus, pois é dotada de sabedoria divina. Sabedoria não no sentido de filosofia, pois filosofia é uma coisa e sabedoria é outra coisa. Sabedoria é própria dos Deuses, e filosofia é própria do homem. A etimologia da palavra filosofia já diz tudo: amor à sabedoria. Quer dizer, a filosofia tem pretensões bem modestas. E não poderia ser diferente, pois as pretensões da filosofia são pretensões humanas e tudo que é humano é modesto”. (Conferir primeiro artigo publicado neste Blog, com data de 23/05/2018).