FOTO 1 ‒ 31/05/2008: Aí estou
eu, pequeno amigo da sabedoria, que um
mês antes resistira bravamente aos ataques da contradição.
CRIANÇA NÃO
MENTE [i]
ℛenivaldo
ℛufino
“Assim são as crianças,
como depois pude observar. Sem saber, elas me informaram mais daquilo que eu
tinha sido, do que o saber dos meus educadores” (Confissões, I, vi, 8).
“[...] e justamente nos
meus pequenos pensamentos sobre pequenas coisas, deleitava-me com a verdade” (Confissões I, xx, 31).
Faltavam
apenas dezesseis dias para Alex [ii]
completar três anos de idade. Era um pingo de gente. A festa naquele domingo,
27/04/2008, tinha dois motivos: inaugurar a nova casa adquirida por Émerson e minha
sobrinha Erimércia Freire, e comemorar a chegada de minha filha, Raquel, de
passagem para Serra Negra, SP, onde participaria de um Congresso de Engenharia
Ambiental.
O mistério do
saboroso churrasco que nos tentava a comer com avidez estava nas hábeis mãos de
Émerson, que não parava de nos oferecer e empanturrar com aquela delícia. As
demais iguarias servidas após o almoço, também tentadoras, ficaram por conta da
participação de mãos não menos hábeis, que para lá se deslocaram levando sua
singela cooperação ao encontro tão especial promovido pelo querido casal.
Éramos vinte e
duas pessoas ao todo [iii],
entre crianças e adultos. Dessa vez captei algumas coisas observando o
comportamento e os hábitos das crianças ali presentes, mas os dados precisos da
primeira luta de não-contradição me foram repassados, como dádiva, por uma
preciosa informação de Ricardo, que ainda era noivo de minha sobrinha Lyz –
apelido afetivo de Lyzandra Freire – e que brindou a todos que estávamos na
sala naquele momento. Nem imaginava ele o profundo valor filosófico que se
escondia por trás do seu relato tão rico de detalhes e, como se não bastasse,
na presença do personagem central daquela trama.
Foi muito
divertido – e até mesmo engraçado – acompanhar a maneira como Ricardo chegou à
sala e armou o palco para seu relato. Ele, o narrador aparentemente tagarela,
de gestos teatrais, e Titico Algodão
como pivô de toda aquela encenação, baseada em fatos reais e, para dar maior
dramaticidade, todos eles recentíssimos. Utilizando o poder persuasivo da
palavra autoritária de tio afim – como adulto que já tem pleno domínio
intelectual da fala –, convoca de forma sucinta: – “Senhor Alex, venha cá!” A
postura é de uma plasticidade encantadora e, ao mesmo tempo, teatral: quando a
convocação é atendida e aquele pingo de gente se aproxima, Ricardo coloca a mão
direita sobre a cabeça da criança, aumentando ainda mais a diferença entre suas
estaturas e a fragilidade do menor, e de lá do alto de sua excelsa posição,
argumenta em tom taxativo: – “Senhor Alex, diga, agora, quem é que lhe bateu,
diga!” Em seguida, conta como tudo aconteceu. E ele ficou ali, paradinho, como
que petrificado, escutando o relato.
Alguns adultos
estão conversando na calçada. Com o portão da garagem aberto, Alex aparece por
lá de mansinho, assim como quem não quer nada, mas querendo tudo. Temeroso com
sua segurança e precavido diante de algum imprevisto, Ricardo adverte ao
pequeno: – “Cuidado, Alex, não vá para a rua, pois é perigoso por causa do
movimento dos carros. Entre, é melhor você entrar”. Sabe-se lá como é que ele
recebeu e entendeu, no íntimo de sua alma infantil, esse complicado e difícil
linguajar de gente grande. Ou, talvez até entendera tudo, mas sua vontade de
querer, naquele momento, não o direcionava a uma obediência irrestrita e
passiva ao preceito que lhe vinha daquela ordem lá do alto. E com vocabulário e
criatividade razoável para uma criança da sua idade, enfrenta seu conselheiro
maior com estas palavras: – “Vou dizer à mamãe que você me bateu”. Realmente,
uma ideia genial para sair daquele sufoco e se safar de uma indesejável ordem,
vinda de alguém que nem seu pai era. Quem sabe, talvez no íntimo, no íntimo
mesmo, ele nem quisesse contar aquilo para sua mãe, mas se sentir tão livre
quanto aqueles adultos – como o próprio autor do preceito – e continuar ali na
calçada, sim, desfrutando de uma liberdade própria de gente que pensa que é
grande e sabe onde fica o nariz.
Aquela alma racional em estado inicial – como escreve
a querida colega Cristiane Abbud em seu excelente texto de doutoramento na USP
–, e sem nenhum domínio intelectual da palavra por ela mesma proferida –
diferentemente do seu interlocutor –, só não contava com uma coisa: que a
lógica de sua inteligente argumentação e a força dramática da violência
praticada, cairia por terra de um só golpe, pois se tratava de uma contradição.
Dito com outras palavras, sua pequena frase não era verdadeira, pois ninguém
lhe batera. E agora, como sair desse labirinto e assumir uma postura de não-contradição?
Essa missão seria quase impossível, pois era tão pequena a sua cabeça e, além
do mais, estava com aquela imensa mão sobre ela, como se fora a ameaçadora
espada de Dâmocles (séc. V-IV a.C.). E, para complicar ainda mais o quadro já
estarrecedor, a lógica da conclusão daquele opositor estava irretorquível, pois
nela não havia nenhuma contradição. E agora, o que fazer, como sair dessa?
A mão de Ricardo
continua posta sobre a cabeça de Alex, com um peso ameaçador. Ameaça maior,
porém, é o daquela frase que paira no ar: – “Senhor Alex, diga, agora, quem é
que lhe bateu, diga!” O espírito santo
da mãe estava ali presente em pessoa, vendo e ouvindo tudo. Os olhos de Lu –
apelido afetuoso de mamãe Luciana – se fixaram no filho. Os meus olhos e a
minha atenção também se fixaram nele, pois estava curioso para saber qual seria
o desfecho daquela luta por uma postura não contraditória. E assim estavam os
olhos e a atenção de todos naquela sala. O que fazer diante de um confronto
desses? Àquela altura Ricardo já dera uma trégua e retirara sua mão
estrategicamente. As palavras, entretanto, não paravam de ecoar lá dentro: –
“Vamos lá, senhor Alex, diga, agora, quem é que lhe bateu, diga!” De forma
brilhante e com um propósito firme na sua vontade de querer, mesmo sem ter
consciência disso, resolve tomar o caminho do bom senso que é o da não-contradição,
mesmo que isso pareça uma perda: sem dizer uma palavra sequer, sem esboçar um
gesto de resistência, retira-se da sala, coçando a cabeça! A cena é
simplesmente deslumbrante!
Aquele era o dia
de Titico Algodão ser testado na
prática da sua lógica, pois mais uma vez surge diante dele o poder
argumentativo das palavras de um adulto, na pessoa do meu irmão e seu tio-avô
Raimundo Freire, que viera de São José dos Campos juntamente com a esposa,
Anita, a nora, Eliana, e a neta, Ana Júlia. Eu mesmo observei e acompanhei cada
detalhe dos acontecimentos.
Algumas crianças
estão ao lado de Raimundo, inclusive Alex, e cada uma saboreando seu delicioso
churrasquinho. Não precisa dizer onde se concentrava a atenção e a vontade do
querer de todos e não apenas das crianças: em degustar aquela delícia servida
por Émerson. Pois bem, de repente meu irmão pede o churrasquinho de Alex, que
nega peremptoriamente. Diz ele: – “Não”! Mesmo sem desfrutar do uso pleno da
razão de um adulto e sem utilizar verbo, como fazemos muitos de nós quase
sempre, o que o pequeno quis dizer foi: – “Não dou, não”!
O tio-avô adulto e
do alto de sua experiente inteligência de cerca de sete décadas de vida, não
fica convencido diante da negativa e utiliza um poderoso recurso argumentativo,
de fundo filosófico, que é o do exemplum.
Pede o churrasquinho de um companheiro e primo de Alex, que está ali ao lado
dele: Thales – sete meses e dezesseis dias para completar três anos de idade –,
que, sem resistir ao pedido e desprovido, naquele momento, do egoísmo tão
característico de crianças e adultos, entrega seu delicioso pitéu. Faltava
apenas isso para mais uma investida do arguto raciocínio do tio-avô: – “Tá
vendo aí, Alex, Thales me deu o churrasco dele! Agora me dê o seu”. Certamente,
ele não contava com o fato de que essa era a segunda investida, naquele dia,
contra alguém já famoso pela sua postura de não-contradição. Para desespero do
tio-avô – que parecia tão entregue ao vício da gula – e para salvar uma vez
mais a pele do nosso herói em sua habitual coerência, o garoto enfatiza sua
resposta, como quem se perguntasse se o tio ainda não entendera o que ele
dissera há poucos instantes: – “Não”! E eu, vibrando com tudo aquilo e já
prevendo que a vitória no ringue seria daquela alma tão frágil no uso
intelectual da fala e, por isso mesmo, no uso da lógica no discurso, observo
que o tio-avô insiste, insiste, mas nada consegue além da negativa, mil vezes repetida. E assim, o garoto sai
de novo de uma situação embaraçosa e aparentemente difícil, com uma congruente
postura de quem não está a fim de se contradizer.
GALERIA DE FOTOS
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FOTO 2 ‒ Concentrava minha
atenção em algum ponto imaginário como se fora um pensador adulto. Era só aparência!
FOTO 3 ‒ Caí no sono! Diante
dessa linda cena, meu querido Txio Reni Babudo
escreveu: “Dorme, pequena alma em estado
inicial, pois aqueles que te amam velam pelo teu sono”. Aí me lembrei de
uma canção que os frades cantavam para Marcelino dormir. Só sei disso, porque o próprio Txio Reni me falou do filme "Marcelino, pão e vinho".
FOTO 5 ‒ 27/11/2010: Nesta foto eu já estou quase um rapazinho, posando na parte externa da
casa dos meus avós em Guarulhos, para txio
Reni Babudo congelar e preservar minha imagem para o futuro, para este
futuro que já se fez presente e passado, e para os próximos futuros.
FOTO 6 ‒ 20/11/2007: Eu adorava essa cama, no quarto que Vovó preparou para Txio Reni trabalhar no seu projeto e
também repousar, claro!
FOTO 7 ‒ 20/11/2007: Eu me esbaldava à vontade, sem perturbar e sem ser perturbado.
FOTO 8 ‒ 27/03/2010: Estou muito bem aqui!
FOTO 9 ‒ 12/07/2009: É, não teria mesmo como mentir [iv], pois me tornei amante
da sabedoria.
FOTO 10 ‒ 15/11/2007: Ora, todo amante da sabedoria tem direito a folgas e brincadeiras!
FOTO 11 ‒ Que pingo de gente que eu era! Aqui, caminho em passos ainda vacilantes ao
encontro da querida Titia Lilica.
FOTO 12 ‒ 27/12/2010: Estou
muito orgulhoso ao lado de Papai, Mamãe e Vovó!
FOTO 13 ‒ Felicidade dobrada, ao lado de Vovô e Mamãe!
FOTO 14 ‒ 27/03/2010: Txio Reni
sempre contava comigo para ajudá-lo nas difíceis pesquisas do doutorado. Aos poucos fui aprendendo a filosofar.
FOTO 16 ‒ 14/06/2008: Vovô todo sorridente com minhas primeiras peripécias
na moto (pelo menos, capacete eu já sabia usar)!
FOTO 17 ‒ 16/05/2010: Foi muita
alegria no meu aniversário, com a ajuda de Tio Rodolfo, e ao lado de minha
querida Mãe e minha inesquecível Vovó Nilza.
FOTO
18 ‒ 16/05/2009: Aqui eu me faço acompanhar da minha querida tia-avó Neuza e do
meu Txio Reni, aliás, eu venho
errando desde o começo, pois ele é meu tio-avô, mas acostumei a chamar de txio mesmo.
FOTO
19 ‒ E quase num piscar de olhos, fiquei assim... Estava virando gente grande!
[i] “O princípio da não-contradição foi (primeiramente) formulado por Aristóteles e
diz-nos que uma proposição verdadeira não
pode ser falsa e uma proposição falsa não
pode ser verdadeira. Nenhuma proposição (na lógica clássica), portanto, pode ser
os dois ao mesmo tempo”. Algoritmo do Google.
Originalmente com o título de Filosofia do cotidiano infantil, este
artigo foi um dos muitos que fiz durante o período dos meus estudos em São
Paulo, de julho de 2003 a fevereiro de 2011. Minha tentativa era extrair ideias
filosóficas do cotidiano de cinco dos meus sobrinhos-netos, todos ainda na fase
infantil.
[ii] Alex Pereira Freire (13/05/2005), meu
sobrinho-neto, filho de Alex e Luciana e neto de Reginaldo e Jeanete.
[iii] Do tamanho da caravana da Jubaíba que esteve presente ao 10º Congresso da Juventude Batista Brasileira, em Recife, no ano de 1974, conforme artigo publicado neste Blog, em 06/06/2021.
[iv] “Se Deus é criança, pois jamais mente, a criança é Deus, pois é dotada de sabedoria divina. Sabedoria não no sentido de filosofia, pois filosofia é uma coisa e sabedoria é outra coisa. Sabedoria é própria dos Deuses, e filosofia é própria do homem. A etimologia da palavra filosofia já diz tudo: amor à sabedoria. Quer dizer, a filosofia tem pretensões bem modestas. E não poderia ser diferente, pois as pretensões da filosofia são pretensões humanas e tudo que é humano é modesto”. (Conferir primeiro artigo publicado neste Blog, com data de 23/05/2018).