domingo, 2 de maio de 2021

O PODER DAS PALAVRAS

 

25/07/2008, Ralflex, Via Dutra, São Paulo, SP: Que palavras poderosas trocavam nessa hora meu irmão Regi (Reginaldo Freire), minha filha Raquel e minha mulher Cosma?


O PODER DAS PALAVRAS

enivaldo ufino

 

“Nós, os cidadãos, somos os legítimos senhores do Congresso e dos tribunais, não para derrubar a Constituição, mas para derrubar os homens que pervertem a Constituição”.

Abraham Lincoln

Este é um assunto sobre o qual não gostaria nem de falar e nem de escrever. Porém, provocado pela frase acima, que me foi encaminhada em março de 2020, atribuída a Lincoln,  descontextualizada diante da então situação caótica que vivia o Brasil (e ainda vive), continuarei a falar e a escrever, seguindo o paradoxo da prolixidade agostiniana quando diz que é melhor calar que falar e, ao mesmo tempo, que é melhor falar que calar. Se a expressão acima não for Fake, isto é, notícia falsa, pois não me dei ao trabalho de pesquisar ‒ apesar de fazer isso no final ‒, a frase de Lincoln se aplica a um determinado momento da vida e da política norte-americana, o que não é o caso do Brasil, pelo menos no momento atual (2020) e, por outro lado, também é o caso do Brasil, desde que a frase seja vista por outro prisma.

Essa frase já seria suficiente para elucidar muita coisa sobre a nossa atual situação (2020), haja vista o recente pronunciamento nada democrático e nem constitucional do presidente brasileiro, ao convocar, pelas redes sociais, uma manifestação pública dos que ainda o apoiam, justamente contra as instituições e seus representantes legitimamente constituídos. Se a convocação fosse de fato e de direito “para derrubar os homens que pervertem a Constituição”, então o senhor presidente seria o primeiro a ser destituído, quer por conta dessa incitação e convocação irresponsável, quer pelo fato de ter sido eleito ancorado em um golpe contra a Constituição e contra o povo brasileiro ou, ainda, pela explícita apologia à ditadura militar e à violência até mesmo contra a mulher e, também extremamente grave, por se ter valido de disparos não de armas, mas de Fake News, e isso a tal ponto que até foi constituída uma Comissão Parlamentar de Inquérito para tratar do assunto.

Se fosse “para derrubar os homens que pervertem a Constituição”, então seria o tempo adequado, mesmo que já tenha passado do tempo, de derrubar certo ministro, pois com ele e sua turma do judiciário a Constituição Brasileira foi ferida de morte e continua agonizante numa “Democracia em Vertigem” [i] (a referência, aqui, é ao ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, que finalmente foi declarado suspeito, apesar de tudo ter sido clarificado já naquele tempo pelo The Intecept). Mas não se trata de derrubar nenhum desses personagens maléficos à vida brasileira, porém de continuar ferindo a já debilitada Constituição, depois de tantos golpes sofridos desde o famigerado golpe que destituiu uma presidenta eleita pelo voto popular, colocando não apenas a própria Constituição no lixo, mas também os votos e os títulos de eleitor de tantos milhões de pessoas.

Se se tratasse mesmo de “derrubar os homens que pervertem a Constituição”, então é bom que se lembre de que nada foi feito contra aquele candidato a presidente que, inconformado com a derrota, como ocorre com gente antidemocrática dessa laia, chegou a pronunciar em público e diante do Senado Federal palavras que são o mais duro golpe e desvario contra a ordem constitucional brasileira e um tapa na cara do povo: “Vamos obstruir todos os trabalhos até o país quebrar e a presidente Dilma ficar incapacitada de governar, sem apoio parlamentar. Aí reergueremos o país que nós queremos. Independentemente dos acontecimentos que envolvam o ex-presidente Lula e as ações do Judiciário. Sem o poder Legislativo, nenhum governo se sustenta” [ii] (isso quer dizer que, com apoio Legislativo, até desgovernos se sustentam, o que nada tem a ver com democracia). E até hoje ninguém tocou num fio de cabelo e nem ousou derrubar esse rapaz, apesar de todos os seus envolvimentos explícitos. O Brasil estava e continua em época de estupros, só para pensar pela linha de raciocínio real e metafórico de Marcos Monteiro, que escreveu em seu Blog, sob o título “Quatro estupros e um impeachment”: “O estupro da adolescente por cerca de trinta homens, que chocou fortemente a nossa imaginação e a nossa sociedade, me levou à cena da votação do impeachment no Congresso Nacional. Ali, de certa forma, também se consumava o estupro de uma mulher, a presidenta Dilma, cena pública despudorada, divulgada para o mundo todo, em que se misturavam orgasmo e crueldade, mistura que deveria ser impossível em nossa civilização. Pelo menos um deputado [iii] teve a coragem cínica de expressar o que estaria implícito na sanha coletiva: o impeachment era a continuidade da tortura a que a presidenta fora submetida muitos anos antes. E faz bem lembrar que na ditadura a tortura de mulheres era acompanhada do estupro”. Quem tiver boa memória vai lembrar quem foi esse então deputado que votou a favor da tortura e da violência, e não só nos tempos da ditadura militar.

São muitas coisas que possibilitam tantas aberrações. Aí vai um exemplo: parte significativa do povo brasileiro, na sua simplicidade acrítica e fideísta, não pára para pensar e analisar o que ocorre em tantas situações vexatórias e até desesperadoras. Ora, se eu não penso e nem analiso de maneira crítica, então sou alvo fácil e passivo de todo tipo de armadilha, mesmo uma armadilha contra mim e contra pessoas mais próximas. Uma dessas armadilhas, talvez a mais cruel e devastadora, está por trás de nomes ou palavras. Basta citar duas palavras que têm mexido muito com a imaginação do povo brasileiro nos últimos tempos. São elas: mito e messias. São nomes de peso e na medida certa para determinados fins. Mito é um nome, ou palavra, que tem poder assim como messias. Esses nomes estão interligados, pois tanto messias é mito, quanto mito é messias. O primeiro leva geralmente à Grécia e o segundo leva tanto à escritura hebraica, quanto à escritura cristã. No caso do Brasil, e da situação caótica que atravessa, as duas palavras formam um amálgama e estão intrinsecamente ligadas.

Tanto mito quanto messias trazem, ainda, uma conotação salvífica e também fomentadora de maravilhas. Ora, se um dos significados de mito em sua origem é o de uma narrativa de caráter sagrado, verdadeiro, e não fábula, invenção ou ficção, a palavra messias se encaixa perfeitamente nesse escopo. Claro que essa é uma maneira simples de dizer, mas a ênfase aqui é no fato do quanto essas duas palavras têm sido efetivas no mundo político brasileiro, pelo menos na mente de pessoas mais simples em termos de conhecimento e de senso crítico. Trata-se de uma arma muito poderosa. Quer queiramos, quer não, mito e messias trazem consigo o lado obscuro do poder dos super heróis. Na visão simplista e conformista dessas pessoas, o messias cristão traz espada e não paz e, no final das contas da última prestação de contas, separará a humanidade por ele criada em dois grupos, um destinado à perdição eterna e outro à salvação eterna. Uma visão dessas tem tudo para fomentar ódio, exclusão, desprezo, atrocidades, até mesmo com pessoas mais achegadas. Nesse sentido, Hitler era um mito e um messias em busca da raça pura. Mesmo que mentiras sejam proferidas por tais pessoas, veiculadas e espalhadas aos quatro cantos da terra, imediatamente se transformam em verdades, relatos isentos de quaisquer erros assim como as sagradas escrituras, inclusive gregas, pois são provenientes da fonte sagrada, da fonte verdadeira, da imexível mente divina. Se vier guerra, derramamento de sangue, miséria, sofrimento, penúria e abandono, tudo é justificável se visto por esse prisma, pois faz parte da inquestionável vontade soberana da divindade.

Fazendo buscas pela frase à epígrafe, descobri que o décimo sexto presidente dos Estados Unidos, que governou entre 1861 e 1865, fez um discurso no Cemitério Nacional de Gettysburg, “na tarde do dia 19 de novembro de 1863, quatro meses depois da vitória na batalha de Gettysburg, decisiva para o resultado da Guerra da Secessão”. Era o final de uma sanguinária Guerra Civil entre “irmãos” filhos da mesma nação. A frase, entretanto, não se encontra no discurso publicado pelo algoritmo do Google ao qual tive acesso.

Alguns estão chamando de “ato cívico” a essa manifestação convocada pelo presidente para o dia 15 de março (de 2020), que nada tem de democrática. Pelo contrário, é mais um assassinato à Constituição Brasileira. Será que seria um ato tão cívico quanto foram os do golpe covarde para a deposição de Dilma, e do discurso cheio de ódio de Aécio inconformado com a derrota? Ou seria um ato cívico como o de pessoas que se dizem cristãs e estão espalhando falsas mensagens e outras insinuações perigosas, só para manter o mito e o messias no poder? Quantas amizades têm sido prejudicadas por conta dessa desgraça que toma conta do Brasil. É bom lembrar, no entanto, que paciência tem limite, sobretudo numa “democracia em vertigem”! Encerro esta reflexão com mais uma contribuição de Marcos Monteiro, que faz parte do texto da citação anterior, de 1 de junho de 2016:

“A adolescente, a presidenta Dilma, a justiça e a democracia, são quatro vítimas da cultura do estupro. Mas o impeachment tinha como objetivo uma violência maior, a qual ainda se encontra a caminho. Com ferocidade incestuosa, o Congresso Nacional se prepara para estuprar a pátria, a nossa “mãe gentil” já tão desnudada. A saúde, a educação e outros parcos direitos dos seus filhos trabalhadores se encontram sob ameaça e, se o seu solo quase não mais lhe pertence, prepara-se mais uma invasão no seu subsolo: da mesma maneira que lhe arrancaram o minério, pretende-se lhe invadir as entranhas e arrancar o petróleo, exatamente quando se descobre a riqueza inesperada de um exuberante pré-sal. As metáforas, as figuras, as imagens e as palavras aqui entrelaçadas não têm como ser suaves porque o momento não está para a poesia ou para as cantigas de ninar. Diante de tanta violência física e simbólica, todo texto precisa se tornar grito de dor, de horror, de revolta e de denúncia, na esperança de que a resistência vá se espalhando e sacudindo a todos e todas, em coletivo despertar”.

É preciso elucidar, nessa espécie de adendo que não constava do original, que este texto foi produzido inicialmente com o título “O poder do mito”. Quando soube que já existe um livro homônimo, apesar de eu mesmo não conhecer, resolvi mudar o título. Relutei bastante em publicar, pois não quero provocar ninguém e nem suscitar discussões sobre um tema tão melindroso e que tem prejudicado até mesmo antigas amizades. Resolvi fazê-lo pelos seguintes motivos: (i) para compartilhar uma ideia que desenvolvi a partir da provocação de um amigo e companheiro de velhas datas, através unicamente da frase atribuída ao presidente norte-americano, Abraham Lincoln; (ii) para atender a esse amigo, de quem não cito o nome por questões éticas, que pediu para que eu reenviasse o texto; (iii) e, ainda, para não deixar essa minha produção, mais intelectual que política ‒ pois nada entendo de política ‒, mofando no arquivo morto do Notebook. Sendo assim, entendo justificada a minha opção. Pediria a prováveis leitoras e leitores que, se for possível, comentem apenas o aspecto intelectual do texto, como têm feito nas publicações que já saíram neste Blog, mesmo assim, sintam-se livres para registrar o que desejarem, pois esse é um direito que lhes assiste. E lembrem-se de algo muito importante: é imprescindível que registrem seus nomes no final do comentário, para que fique identificado. Se quiserem, podem deixar o comentário no Whatsapp que eu transferirei e comunicarei a cada pessoa. Entretanto, a personalização já sai automaticamente para quem tiver e-mail do Gmail. Ao comentar e pedir para publicar, seu e-mail já será acessado e, uma vez aberto, o comentário é publicado devidamente personalizado. Deixo aqui os meus mais sinceros agradecimentos a todas e todos, ao tempo em que desejo uma aprazível leitura sobre essas duas poderosas palavras, mito e messias.



[i] A referência, aqui, é ao ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, que finalmente foi declarado suspeito, apesar de tudo ter sido clarificado já naquele tempo pelo The Intecept.

[ii] Isso quer dizer que, com apoio Legislativo, até desgovernos se sustentam, o que nada tem a ver com democracia.

[iii] Quem tiver boa memória vai lembrar quem foi esse então deputado que votou a favor da tortura e da violência, e não só nos tempos da ditadura militar.

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Hoje, como profissional da área de biologia, Raquel utiliza o poder das palavras como professora universitária, a fim de formar jovens cientistas que também darão sua contribuição ao Brasil de forma benéfica, efetiva e transformadora.