domingo, 7 de março de 2021

A CASA DAS CINCO PESSOAS DA SANTÍSSIMA TRINDADE

 


28.02.2021 Na piscina do Clube Português de Recife, após nadar dois mil metros. As marolas separadas em número de três e de cinco. Crédito da foto: Nilson Veras de Farias.

A CASA DAS CINCO PESSOAS DA SANTÍSSIMA TRINDADE

enivaldo ufino

Ainda cheguei a pensar que essa minha ideia fosse puro devaneio. Tanto pelo fato de tentar colocar cinco pessoas poderosas numa mesma casa, quanto pela maneira um tanto esdrúxula como esse pensamento chegou e se desenvolveu na minha mente. E, ainda mais, por ter permitido que o pensamento fosse gerado e também parido em forma de texto. Isso lembra mais uma brincadeira infantil de um garoto afeito a esses jogos tão divertidos da infância.

Tudo começou na piscina olímpica do Clube Português de Recife. Estava no exercício diário dos dois mil metros de natação, esse esporte que muitos dizem ser um tanto solitário, e fazia a contagem cuidadosamente. Se as divisórias da piscina estão no sentido da largura, é preciso dar quatro voltas para completar cem metros; se estiverem no sentido do comprimento, bastam duas voltas para completar cem metros. Essas divisórias são colocadas para evitar, pelo menos em parte, as ondas naturais, ou marolas, a fim de que o nado se torne mais confortável. Algumas pessoas fazem a contagem apenas mentalmente, o que pode levar a erros tanto nos totais parciais quanto no total geral. Outras pessoas, como era e ainda é meu caso, preferem marcar separando as espécies de contas ou boias que fazem parte das divisórias, também conhecidas como marolas. Isso não quer dizer que a contagem fique certa, pois mesmo assim ainda se pode cometer erro em termos da quantidade de metros nadados, tudo causado pelo esquecimento durante a contagem.

Nadei muitos anos [i] sem me preocupar em brincar, pois natação é coisa séria. Tão séria, que se resolvesse brincar com coisa tão importante o tiro poderia sair pela culatra. Assim sendo, nada de criancice, nada de jogos infantis dentro d’água, nada de preocupação com outra coisa senão nadar e sempre com estilo e desempenho os mais corretos possíveis. Ora, uma vez que natação é um tipo de esporte muito complexo, eu me dedicava exclusivamente ao aprendizado e a comemorar o resultado. Só depois de um ano na escolinha é que finalmente me convenci de que valia a pena continuar, pois até aquele ponto as crises de coluna também tinham desaparecido completamente. Alguns anos depois, quando já iniciara meus estudos de pós-graduação, comecei a fazer planos acadêmicos enquanto nadava. As águas foram uma fonte de inspiração. E de lá saíram ideias para monografias e até mesmo dissertações de mestrado e tese de doutorado. Era tudo muito automático, encantador e revolucionário. E eu ficava cada vez mais empolgado com tudo aquilo. A água se tornou minha amiga com o passar do tempo, pois eu lidava com ela como uma criança lida com seus brinquedos favoritos. Cheguei a um desempenho razoável quando estava no auge, pelo menos no meu caso de iniciante: fazia dois mil metros de crawl em apenas quarenta e cinco minutos. E tudo começava sempre pela primeira braçada. Todavia, a alegria só seria completa quando alcançasse a última braçada.

A brincadeira com a inclusão da trindade só começou anos depois, quando senti necessidade de fazer a contagem separando as contas das marolas: uma conta para cada cem metros nadados, sendo que cada cem metros constavam de quatro voltas. E uma vez que nadava o total de quinhentos metros em cada etapa, aí é que surgiu a ideia da casa das cinco pessoas da santíssima trindade. A contagem era feita da seguinte maneira, e sempre repetindo quatro vezes até completar os cem metros: a primeira pessoa era o pai primordial, a segunda pessoa era o filho, a terceira era o espírito santo, a quarta era a mãe e a quinta era o pai que não era pai. Em outras palavras, eram Deus, Jesus, Espírito, Maria e José. Ora, inserir José e Maria na trindade não seria a apostasia de um devaneio dos últimos tempos? Poderia até ser, mas não era, pois sem esses dois a própria trindade se esvaziaria. E, como sabemos, no primeiro credo, o de Niceia, de 325, Maria já entra como theotokos, ou mãe de Deus. Assim como a trindade não se sustenta sem Maria e sem José, Maria não se sustenta sem José e nem José sem Maria. É um amálgama em que o que conta é essa interdependência: um só existe em função do outro, mesmo que, paradoxalmente, sejam independentes entre si.

Seria essa uma ideia estapafúrdia, de uma criança dentro de uma piscina a brincar com coisa demasiadamente séria e intocável? Poderia até ser, mas também não era, pois a literatura está cheia de exemplos da espécie, como descobri posteriormente. Seguindo uma lógica rudimentar, autores de renome defendem a importância de Maria na economia da salvação, colocando-a até mesmo acima do próprio filho. E, sendo mãe de Deus, ela não seria em nada menor que o pai. É claro que se trata de uma construção sem aquele aparato intelectual dos grandes gênios do cristianismo, que engendraram uma espécie de tríplice politeísmo a partir do monoteísmo do povo hebreu que, no final das contas, também é um politeísmo de acordo com esses mesmos autores, uma vez que o monoteísmo judaico só foi definido como tal a partir do segundo Isaías, ou seja, de maneira muito tardia. O que existia até ali era também um politeísmo, próprio dos povos nômades do deserto com seus Deuses tribais.

E para que não se diga que não falei de flores, como diria Geraldo Vandré na sua célebre e censurada canção pela ditadura militar, ou que não falei de filosofia, como pretendo, mais ideias vieram à minha mente no memorável sábado 13 de fevereiro de 2021, ao retornar à natação após uma seriíssima inflamação no ouvido esquerdo (otite externa), que quase me tira do sério, que terminou me tirando da piscina por quase um mês. Resolvi brincar, e fiz a contagem separando as marolas como se fossem pessoas da santíssima trindade. E naquele dia foram não apenas cinco, porém oito, cada marola/pessoa representando cem metros, pois meu nado atual consta de uma série de oitocentos metros, uma segunda de quatrocentos e a última de oitocentos. E de que maneira a ideia filosófica veio à tona? Ora, assim como a natação começa pela primeira braçada, toda divindade também começa pelo começo, isto é, a partir da primeira divindade, particularmente como é o caso da construção cristã. Por outro lado, a divindade não pode se misturar com a matéria caso queira manter seu estatuto espiritual e metafísico. Nesse caso, a unidade e a multiplicidade são antagônicas: a junção das duas geraria o esvaziamento do divino. Daí a ideia agostiniana, baseada na filosofia plotiniana que, por sua vez, bebeu da fonte platônica, de que Deus criou todas as coisas a partir da ideia dessas coisas que existe em sua mente, o que o bispo de Hipona nomeia de razões seminais, que originalmente foi criada pelos estoicos e só depois foi retomada e reelaborada por Plotino. Só dessa forma não há mistura do uno com o múltiplo. O conceito de criação, na filosofia cristã, surge dessas ideias como pensamento de Deus através das razões seminais: “E, assim como as mães ficam grávidas de sua prole, da mesma forma o mundo inteiro está grávido das causas dos seres que nascem, causas que são criadas no mundo por aquela Essência suprema sem a qual nada nasce e nada morre, nada começa e nada acaba” (Reale, “História da Filosofia”, vol. I, Paulus, 1990, p. 453, citando o Comentário literal ao Gênesis, da autoria de Agostinho). Só assim fica resolvida a questão filosófica colocada pelo autor, às páginas 449 e 450 da mesma obra: “Por que e como, do Ser que não pode não ser, nasceu também o devir, que implica a passagem de ser a não ser e vice-versa?” Minha brincadeira ao nadar é justamente com essa divindade, que não se mistura com o mundo e com a multiplicidade, e também com mais duas que foram acrescentadas pelos construtores intelectuais do cristianismo a partir da fonte judaica. E, como se não bastasse, resolvi adicionar mais duas pessoas que, a meu ver, são imprescindíveis para a sustentação da própria trindade. Existe, por acaso, heresia maior? 

Sempre que nadar, hoje ou no futuro, lembrar-me-ei dessa brincadeira da contagem trinitária à qual foram agregadas mais duas importantes pessoas. Sendo assim, a casa da divindade escancara as portas para receber e dar boas vindas não apenas a mais duas, porém a pessoas de todas as épocas, raças, tribos, nações e credos, sem rancor, sem rigor, sem preconceito, sem julgamento prévio, sem privilegiados, mas apenas em sua função primordial de juntar os desiguais como essencialmente iguais em seus direitos. Direitos que são sagrados aos seres humanos como tais. E só assim a brincadeira dentro da piscina se torna completa e ainda mais prazerosa, quer a natação seja solitária, quer solidária.



[i] Comecei o aprendizado de natação na Escolinha do Clube Português, em 1993, por conta de duas crises de coluna, distanciadas uma da outra, que me surpreenderam e me levaram a sair do trabalho em uma cadeira e a me submeter a duas extensas sessões de fisioterapia. Da segunda vez, perguntei ao médico o que deveria fazer para não voltar mais lá, e ele me respondeu: “Andar ou nadar”. Foi então que pensei: “Andar eu já sei, porém, nadar ainda não sei”. A partir daí, decidi começar do zero. Depois de um ano de tentativas, ainda estava em dúvida se chegaria a aprender alguma coisa que valesse a pena. Pensei em desistir diversas vezes, mas como sempre fui insistente e determinado e jamais abandonara coisa alguma que planejara, resolvi continuar e assim faço até hoje. E de vez em quando, ao demarcar os metros nadados, eu me lembro dessa infantil e salutar brincadeira aquática. E isso me faz um bem danado.


28.02.2021 Na piscina do Clube Português de Recife, após nadar dois mil metros. As marolas separadas agora são em número de oito. Crédito da foto: Nilson Veras de Farias.