ℛenivaldo ℛufino
Dizer o iletrado ilustre
parece contradição e de fato é. O mundo das letras é complicado e
incompreensível para muita gente, sobretudo para a pessoa iletrada e ainda mais
para a criança. Apesar
de utilizar as letras ao falar e interagir com outras pessoas, a partir dos
primeiros conceitos que começa a emitir, a criança nada ou quase nada sabe desse
esquisito universo da linguagem, dos sinais gráficos e dos signos. Por isso parece
paradoxal dizer que uma pessoa iletrada é douta ou ilustre. Mas é isso mesmo que
quero dizer, pois, como já mencionei em outra publicação, “a criança é Deus,
pois é dotada de sabedoria divina”. Apesar de não ter consciência nem saber
nadinha disso, também usa palavras revestidas de som para expressar seus
pensamentos, mesmo que ainda não completamente desenvolvidos. O pensamento assim revestido de som é uma das coisas mais
sublimes da linguagem humana, pois equipara a todas as pessoas no mesmo
patamar. Pouco
importa se a linguagem é erudita ou não, ela sempre expressa essa realidade: a
grandiosidade da comunicação entre almas racionais.
Na era
das redes sociais, a comunicação entre almas racionais se tornou mais intensa e
objetiva. Agora, praticamente todo mundo tem voz e vez, e cada um usando a vez
e a voz como bem entende. Às redes sociais se associa o aglomerado de grupos
que se multiplicam pelo mundo todo em busca de uma melhor interação entre seus
pares. Às vezes a linguagem veiculada é a novíssima linguagem das figurinhas
que falam por si e sem a mínima
interferência de interlocutores e interlocutoras, cujo trabalho é só o de inserir
esses novos ícones da comunicação ao pressionar determinados botões. Algumas
pessoas são especialistas nessa revolucionária arte e outras nem tanto, como é
o meu caso. Mesmo assim, continuo teimando e
tentando me comunicar de alguma maneira, ao utilizar os antiquíssimos e riquíssimos
signos das letras.
Voltando ao tema proposto, mesmo
sem sair dele, tenho especial apreciação e atenção às palavras revestidas de
som que são proferidas por pessoas da área rural, inclusive às que tenho acesso
por conta de laços familiares e com as quais sempre mantive contato. São pessoas doutas, mesmo sem
diploma de doutorado. E por falar nesse assunto, certa vez me dirigia a pé ao
trabalho, em Campina Grande, lá pelos idos dos anos 1970, e ao ficar lado a
lado com um jovem senhor que ia conversando enquanto caminhava ele, sem me
pedir permissão, continuou a conversa contando comigo como interlocutor, e dizendo:
“Antigamente, a coisa mais difícil do mundo era encontrar um doutor, hoje a
gente levanta um tijolo e encontra cinco, seis lá embaixo”. A minha reação não
poderia ser outra senão rir bastante. E assim faço até hoje ao lembrar daquele
episódio insólito.
Vidrado que sou em novelas,
principalmente quando o argumento chama a atenção, observei uma cena
interessante na reapresentação de “Flor do Caribe”. O personagem Hélio foi alçado à vice-presidência
ocupada pelo próprio filho do dono da empresa. Diante de tão grande privilégio
por conta dos seus serviços perigosos e nada honestos, resolveu mudar tudo
tanto no visual do gabinete de trabalho quanto na sua própria titulação. Quando
uma das secretárias o chamou pelo nome, ele completou imediatamente, cheio de
empáfia: ‒ “A partir de hoje vocês me chamem de doutor Hélio”. Assim como
galgou tão rapidamente os difíceis graus da academia,
de lá desceu com a mesma velocidade, pois foi demitido logo depois. Há outra
cena que também chamou minha atenção, e agora não de novela, mas da vida real. Um
dos membros da diretoria de uma grande empresa ligou para o vigilante
procurando saber alguma coisa, e este não o reconheceu. Apesar de ser apenas
graduado ele não teve dúvidas: ‒ “Quem fala aqui é o doutor fulano de tal”. É
impressionante como quem tem o título não se importa em ser chamado porque já
é, e quem não tem quer ser chamado porque ainda não é e provavelmente nunca
será.
Doutor,
mesmo sem ser doutor, é o que tenho visto por esses sertões afora, entre pessoas
que não tiveram o privilégio de acesso ao saber formal. A fala revestida de som
pode até parecer confusa ou desprovida de sentido para quem só vê um lado da
fala, mas não é. São verdadeiros tesouros ocultos em mentes capacitadas pela natureza
e pela adaptação forçada à própria falta de capacitação. Muitos autores ilustres se debruçam nessa temática, como é
o caso de João Guimarães Rosa (1908-1967, 59) em seu romance Grande sertão: veredas, ao narrar em linguagem desconexa a fala de Riobaldo,
“ex-jagunço que relembra suas lutas, seus medos e o amor reprimido por
Diadorim” e, ainda, que “não consegue organizar suas ideias e expressá-las de
modo satisfatório, o que gera um relato bastante caótico” [1]. Essa mesma dificuldade é enfrentada por tantos outros Riobaldo espalhados pelo
Brasil. E não apenas na área rural, mas também desde a periferia até áreas mais
nobres das grandes cidades, sobretudo entre as pessoas menos privilegiadas.
Isso sem falar que até mesmo entre as pessoas mais instruídas existe uma
dinâmica tão rápida no modo de se expressar coloquialmente que chega a causar
espanto. É que a linguagem humana é dinâmica e muda rapidamente, numa espécie
de adaptação aos novos tempos e novos desafios. Estava nos meus últimos dias em
São Paulo, quando se tornou linguagem corrente na universidade a expressão
“Como você chama?” no sentido de “Como você se chama?”, por exemplo. Isso sem falar no gerundismo oriundo dos Estados Unidos, que
se tornou corriqueiro até mesmo nos discursos políticos, e de expressões mais
simples e que são constantes na fala do povo. Tudo isso é comunicação que sempre
comunica de alguma maneira. Assim sendo, nem tem como alguém da cidade reclamar
da linguagem aparentemente mais rude de quem vive alheio a esse tipo de
ambiente mais sofisticado e de alguma maneira mais privilegiado.