domingo, 7 de fevereiro de 2021

O ILETRADO ILUSTRE

 


Ítalo nos primórdios do acesso ao complicado mundo das letras. Esse artigo nos retrata a todos nós e a tantas e tantos que ainda não tiveram a oportunidade que muitos de nós já tivemos.




O ILETRADO ILUSTRE

enivaldo ufino

Dizer o iletrado ilustre parece contradição e de fato é. O mundo das letras é complicado e incompreensível para muita gente, sobretudo para a pessoa iletrada e ainda mais para a criança. Apesar de utilizar as letras ao falar e interagir com outras pessoas, a partir dos primeiros conceitos que começa a emitir, a criança nada ou quase nada sabe desse esquisito universo da linguagem, dos sinais gráficos e dos signos. Por isso parece paradoxal dizer que uma pessoa iletrada é douta ou ilustre. Mas é isso mesmo que quero dizer, pois, como já mencionei em outra publicação, “a criança é Deus, pois é dotada de sabedoria divina”.  Apesar de não ter consciência nem saber nadinha disso, também usa palavras revestidas de som para expressar seus pensamentos, mesmo que ainda não completamente desenvolvidos. O pensamento assim revestido de som é uma das coisas mais sublimes da linguagem humana, pois equipara a todas as pessoas no mesmo patamar. Pouco importa se a linguagem é erudita ou não, ela sempre expressa essa realidade: a grandiosidade da comunicação entre almas racionais.

Na era das redes sociais, a comunicação entre almas racionais se tornou mais intensa e objetiva. Agora, praticamente todo mundo tem voz e vez, e cada um usando a vez e a voz como bem entende. Às redes sociais se associa o aglomerado de grupos que se multiplicam pelo mundo todo em busca de uma melhor interação entre seus pares. Às vezes a linguagem veiculada é a novíssima linguagem das figurinhas que falam por si e sem a mínima interferência de interlocutores e interlocutoras, cujo trabalho é só o de inserir esses novos ícones da comunicação ao pressionar determinados botões. Algumas pessoas são especialistas nessa revolucionária arte e outras nem tanto, como é o meu caso. Mesmo assim, continuo teimando e tentando me comunicar de alguma maneira, ao utilizar os antiquíssimos e riquíssimos signos das letras.

Voltando ao tema proposto, mesmo sem sair dele, tenho especial apreciação e atenção às palavras revestidas de som que são proferidas por pessoas da área rural, inclusive às que tenho acesso por conta de laços familiares e com as quais sempre mantive contato. São pessoas doutas, mesmo sem diploma de doutorado. E por falar nesse assunto, certa vez me dirigia a pé ao trabalho, em Campina Grande, lá pelos idos dos anos 1970, e ao ficar lado a lado com um jovem senhor que ia conversando enquanto caminhava ele, sem me pedir permissão, continuou a conversa contando comigo como interlocutor, e dizendo: “Antigamente, a coisa mais difícil do mundo era encontrar um doutor, hoje a gente levanta um tijolo e encontra cinco, seis lá embaixo”. A minha reação não poderia ser outra senão rir bastante. E assim faço até hoje ao lembrar daquele episódio insólito.

Vidrado que sou em novelas, principalmente quando o argumento chama a atenção, observei uma cena interessante na reapresentação de “Flor do Caribe”. O personagem Hélio foi alçado à vice-presidência ocupada pelo próprio filho do dono da empresa. Diante de tão grande privilégio por conta dos seus serviços perigosos e nada honestos, resolveu mudar tudo tanto no visual do gabinete de trabalho quanto na sua própria titulação. Quando uma das secretárias o chamou pelo nome, ele completou imediatamente, cheio de empáfia: ‒ “A partir de hoje vocês me chamem de doutor Hélio”. Assim como galgou tão rapidamente os difíceis graus da academia, de lá desceu com a mesma velocidade, pois foi demitido logo depois. Há outra cena que também chamou minha atenção, e agora não de novela, mas da vida real. Um dos membros da diretoria de uma grande empresa ligou para o vigilante procurando saber alguma coisa, e este não o reconheceu. Apesar de ser apenas graduado ele não teve dúvidas: ‒ “Quem fala aqui é o doutor fulano de tal”. É impressionante como quem tem o título não se importa em ser chamado porque já é, e quem não tem quer ser chamado porque ainda não é e provavelmente nunca será.

Doutor, mesmo sem ser doutor, é o que tenho visto por esses sertões afora, entre pessoas que não tiveram o privilégio de acesso ao saber formal. A fala revestida de som pode até parecer confusa ou desprovida de sentido para quem só vê um lado da fala, mas não é. São verdadeiros tesouros ocultos em mentes capacitadas pela natureza e pela adaptação forçada à própria falta de capacitação. Muitos autores ilustres se debruçam nessa temática, como é o caso de João Guimarães Rosa (1908-1967, 59) em seu romance Grande sertão: veredas, ao narrar em linguagem desconexa a fala de Riobaldo, “ex-jagunço que relembra suas lutas, seus medos e o amor reprimido por Diadorim” e, ainda, que “não consegue organizar suas ideias e expressá-las de modo satisfatório, o que gera um relato bastante caótico” [1]. Essa mesma dificuldade é enfrentada por tantos outros Riobaldo espalhados pelo Brasil. E não apenas na área rural, mas também desde a periferia até áreas mais nobres das grandes cidades, sobretudo entre as pessoas menos privilegiadas. Isso sem falar que até mesmo entre as pessoas mais instruídas existe uma dinâmica tão rápida no modo de se expressar coloquialmente que chega a causar espanto. É que a linguagem humana é dinâmica e muda rapidamente, numa espécie de adaptação aos novos tempos e novos desafios. Estava nos meus últimos dias em São Paulo, quando se tornou linguagem corrente na universidade a expressão “Como você chama?” no sentido de “Como você se chama?”, por exemplo. Isso sem falar no gerundismo oriundo dos Estados Unidos, que se tornou corriqueiro até mesmo nos discursos políticos, e de expressões mais simples e que são constantes na fala do povo. Tudo isso é comunicação que sempre comunica de alguma maneira. Assim sendo, nem tem como alguém da cidade reclamar da linguagem aparentemente mais rude de quem vive alheio a esse tipo de ambiente mais sofisticado e de alguma maneira mais privilegiado.   



[1] Conferir pelo algoritmo do Google.