Criança não mente. Por isso mesmo é que o adulto é que deve imitar a criança e não o inverso.
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Este texto está
pronto há muito tempo, mas resolvi fazer uma surpresa ao incluir um adendo
muito importante que foi escrito pelo meu filho Joran no último dia do ano que
passou, e que tem tudo a ver com a temática deste conto. O título atribuído ao escrito dele é de minha inteira responsabilidade: "O
menino, o mar e a divindade. Boa leitura para todas e todos.
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O MENINO QUE NÃO MENTIA
Renivaldo Rufino
Analfabeto que era aos dez anos de idade, aquele menino
nada sabia das letras nem dos ditos filosóficos e intelectuais. Jamais imaginaria que no futuro alguém diria, com
respeito aos pequeninos: "Se Deus é criança, pois jamais mente, a criança
é Deus, pois é dotada de sabedoria divina. Ora, se a sabedoria é reservada aos Deuses,
a exceção é feita apenas com a criança, pois ela tem esse tipo de sabedoria
exclusiva da divindade”. Sendo assim, criança não mente, a não ser por imitação
do adulto. Por isso mesmo é que o adulto é que deve imitar a criança e não o
inverso.
A demonstração
inconteste de que a criança não mente é quando ela profere alguma palavra em que
o critério de verdade é posto à prova. Ainda mais se ela não dispõe de nenhuma
outra testemunha. Aliás, a bem da verdade, a criança sempre depende de si mesma
em termos de testemunho, por conta de sua fragilidade. Nessas questões de foro
íntimo, a criança é sempre a mais eloquente testemunha de si mesma. Foi isso
que ocorreu com aquele menino lá no interior da Paraíba, pelas bandas de um
pequeno açude conhecido como Açudinho. O encanto deste conto [i]
aconteceu na segunda metade dos anos 1950.
O menino estava sozinho.
Era a única testemunha de seus próprios atos, pois com ninguém mais contava
além da natureza que o cercava. Perambulava pela parede do açude, enquanto
olhava os arredores e tentava encontrar um alvo fácil de ser atingido pela
pequena pedra de sua baleadeira [ii],
também conhecida naquela região como peteca. Geralmente, pássaros variados e
até mesmo patos vinham beber das águas do açude. A sede causada pelo clima quente
era terrível e aquele lençol d’água em pleno sertão era um grande chamariz. O
nosso garoto sempre teve a atenção voltada para as belezas da natureza,
sobretudo pela maior delas: patos voando. O que mais atraía sua atenção era o
porte elegante daquelas aves, que cruzavam os céus geralmente despidos de
nuvens. Encantava-se com seus longos pescoços e com as patas sempre dispostas
bem estiradas em sentido vertical ao corpo, enquanto voavam nas alturas e
deixavam a marca indelével de sua passagem tão rápida. Seu olhar as acompanhava
até perder de vista.
E como se não
bastasse a intempérie climática do local, os pobres pássaros ainda tinham de
tomar toda cautela com as crianças que perambulassem naquelas cercanias, pois algumas
também eram ferozes predadoras, sempre munidas de armas mortais, coisa que nenhum
pássaro conseguia descobrir, por mais esforço que fizesse. E ali estava um
garoto andando sozinho pela parede do açude, como que à toa, à cata de uma
vítima de porte, inteligência e estratégia bem diferentes e até inferiores da
sua.
De repente, os
olhos do menino param num ponto fixo. Entre os galhos da pequena árvore quase
sem folhas, logo ali à frente, ele notou um movimento que chamou sua atenção.
Aguçou bem o olhar e notou a pequena rolinha quieta, parada, parecendo
adormecida. Bem que a pobre coitada merecia uma sesta após os goles d’água que
tomara à beira do açude. Mas nossa criança não estava preocupada com o merecido
descanso daquele pequeno pássaro, e nem com o direito que ele tinha de viver e
explorar a natureza ao seu derredor. O que a preocupava era outra coisa. Ela
queria aquela rolinha em suas mãos, peladinha e assando nas brasas do fogão de
sua casa. Falar nisso, a saliva já começava a mostrar seu efeito na boca do pequeno caçador. Ele estava ansioso para conseguir seu intento.
Com muita
paciência e lentidão, começou a se ajeitar para desferir o golpe. Daria tudo
para que seus movimentos não espantassem a presa que estava a seu alcance. A
natureza cooperava com ele, pois as poucas folhas das árvores sequer se mexiam.
O vento foi mui amigo nessa hora. Nenhuma pessoa havia ali por perto. Até mesmo
os demais pássaros emudeceram diante da cena. Tudo contribuía para que o
menino tivesse pleno êxito na sua caçada. Até a rolinha como
que se colocava de peito aberto a poucos metros de seu pequeno algoz que, com
movimentos sutis, dava furtivos passos na direção da vítima sem que ela disso
se apercebesse. Tudo que ele queria era chegar com o lindo troféu em casa, como
seu primeiro prêmio de caçador mirim.
Com a arma em
mãos, o pequeno se ajeitou, empunhou a baleadeira na posição correta e a
direcionou exatamente na direção do peito da pobre coitada. Retesou aquela
espécie de arco o máximo que pôde, liberou a pedra fatídica e notou que ela foi
no prumo do coração da emplumada. Percebeu que ela cambaleou no galho, feito
bêbado vencido pela bebida, e caiu na direção do solo. O coração do garoto
vibrou de emoção naquele momento histórico. Só não fez chorar, mas berrou com
toda a força de sua voz mirim: “Consegui, consegui!” E aí não teve dúvidas: correu
até ao local onde o pobre passarinho caíra. Exaurido como estava, por causa do
calor e da sede, mesmo assim chegou rapidamente ao ponto exato onde estaria o
prêmio máximo da batalha vencida, ainda inconsciente de que seu inimigo era tão
pequeno e estava completamente desprovido de qualquer tipo de arma de defesa.
Talvez por isso mesmo sentiu um toque diferente mexendo com seu íntimo, como
que alertando para o ato de covardia diante de um pequeno e indefeso pássaro.
Ficou abismado com
o que viu quando seu olhar pousou no lugar onde a rolinha caíra. Nem marca
havia, nem penas, nem pássaro, nem nada. “Já sei”, pensou, “ela foi baleada e
saiu cai aqui cai acolá. Portanto, deve estar morta em algum lugar!” Resolveu,
então, sair em busca daquela promessa de refeição, e se mandou pelo meio do
mato à procura da pequena preciosidade. Quanto mais procurava, mais se dava
conta da inutilidade de sua busca. Certeza ele tinha, ah, isso ele tinha, de
que atingira o alvo. Estava convicto, ainda, de que a vira cair como morta,
praticamente a seus pés.
Ora, se criança
não mente, essa criança, que ainda vive na pele de uma feliz senectude, também
não está mentindo. E o que vem depois da parede do açude e do retorno a sua
casa, disso não está lembrado. O de que lembra é que matou a rolinha e ela deve
ter saído correndo mesmo depois de morta. Foi o jeito que a pobrezinha
encontrou para se livrar de seu predador de uma vez por todas. De certa
maneira, a vítima também se tornou heroína e não se deixou carregar como um
troféu de um pequeno e incipiente caçador que estava a fim de assá-la e sentir seu
delicioso sabor.
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O
MENINO, O MAR E A DIVINDADE
Joran Diniz Rufino
Hoje é o último dia do ano de 2020. Tive nessa
despedida de 2020 um momento de meditação em um pedaço de terra dentro do mar (na
Ilha de Itamaracá). Instante que vale compartilhar, pelo frescor e incrível
acesso que todos nós temos oportunidade o tempo todo de ter.
É, me afastei um pouco de alguns familiares e amigos para
ficar em um braço de mar bem raso de água, mas cheio de exuberância da
natureza; situação que estimulou bastante um bom mergulho no meu interior. Poxa
vida, como é renovador um momento com essa profundidade de contemplação.
Depois de algum tempo de contato com a essência daquela
paisagem viva, Nicolas aparece naquela pequena ilha vindo em minha direção,
passos de um menino que deixou apenas há algum tempo o andar de bebê, porque já
é um menino de três anos, cinco meses e vinte e cinco dias. Mas o seu caminhar
ainda revela os passos de um recém-chegado neste planeta.
Ele deixou a mãe, a avó voínha, a tia e alguns amigos que
estavam a uns cem metros de mim e veio em minha direção. Nessa hora, toda a força
da natureza estava naqueles passos, naquela pessoa que me escolheu como pai.
Essa vinda dele responde a uma antiga pergunta que me fazia quando chegava a
pontos bem silenciosos de oração como esse, que era: quem tá comigo em um
momento desses, tão alto assim? E nessa
vinda de Nicolas, é como se o universo renascesse para me oferecer a resposta,
nesse sentido do Ser que caminha por esse lugar através da nossa
disponibilidade. Aí pronto, nessa vinda dava para escutar ele cantarolando e
olhando para os pezinhos pisando na areia com água, só que ele perdia direção e
voltava a me procurar para ter a referência para onde estava indo. E veio se
aproximando mais e mais até chegar rindo e me perguntando: "Pai, por que você
tava mudando de lugar o tempo todo?", disse que não, que tava no mesmo
lugar. E ele foi brincando com a areia, com as folhas, com as conchinhas e com
a água ao redor, até que a água salgada entrou no olho dele e ele não gostou.
Começou a chorar, fechar os olhos com força e querer mamãe. Vi que ele não me deixava
olhar o olhinho dele para ajudar, mas senti também que aquele estado de paz e
meditação continuava. Então, comecei a cantarolar com o barulho das ondas e do
vento até que o choro parou e ele deitou no meu peito e amoleceu, até que
pensei que ele estaria dormindo, mas não... era calma mesmo. Depois de muito
tempo, levantei com ele no braço e vim andando muito devagar em direção à mãe e
aos outros e repeti para ele algo que tinha dito assim que chegamos naquele
lugar, antes de ter ido para o meu/nosso Instante, eu disse umas três vezes com
alegria apontando para o céu, terra e mar: "Filho, isso é tudo nosso".
Desse jeito, eu disse novamente... aí chegamos na parte principal da história,
que foi esse diálogo:
Nicolas: "Pai, é tudo culpa!"
Pai: “Como culpa, filho, o que é culpa?”
Nicolas: "O celular e o ventilador. Tudo é culpa Pai!”
Pai: “E a gente, filho?”
Nicolas: "A gente não, pai, a gente tá com Deus!"
Fico grato, com toda limitação dessa escrita ainda sem
correção ter essa história narrada. Mais gratidão ainda pelo filho, pela
família, pelos amigos e pela possibilidade de um ano Novo nessa Paz. Gratidão
de Verdade, pelo encontro nesse achado com Nicolas: "A GENTE TÁ EM DEUS,
PAI!".
FELIZ ANO NOVO, AMADOS!
[i]
Esse texto faz parte dos escritos que estou produzindo já há algum tempo sobre
o encanto dos meus contos com acréscimos e descontos, cuja inspiração me
ocorreu por ocasião da leitura de "Todos os contos", de Clarice Lispector.
[ii] A
partir da juventude ele já não faria uma coisa dessas, pois passou a respeitar
os pássaros e seu direito à liberdade e à vida.
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