domingo, 3 de janeiro de 2021

O MENINO QUE NÃO MENTIA / O MENINO, O MAR E A DIVINDADE

 

Criança não mente. Por isso mesmo é que o adulto é que deve imitar a criança e não o inverso.

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Este texto está pronto há muito tempo, mas resolvi fazer uma surpresa ao incluir um adendo muito importante que foi escrito pelo meu filho Joran no último dia do ano que passou, e que tem tudo a ver com a temática deste conto. O título atribuído ao escrito dele é de minha inteira responsabilidade: "O menino, o mar e a divindade. Boa leitura para todas e todos.

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O MENINO QUE NÃO MENTIA

Renivaldo Rufino

Analfabeto que era aos dez anos de idade, aquele menino nada sabia das letras nem dos ditos filosóficos e intelectuais. Jamais imaginaria que no futuro alguém diria, com respeito aos pequeninos: "Se Deus é criança, pois jamais mente, a criança é Deus, pois é dotada de sabedoria divina. Ora, se a sabedoria é reservada aos Deuses, a exceção é feita apenas com a criança, pois ela tem esse tipo de sabedoria exclusiva da divindade”. Sendo assim, criança não mente, a não ser por imitação do adulto. Por isso mesmo é que o adulto é que deve imitar a criança e não o inverso.  

A demonstração inconteste de que a criança não mente é quando ela profere alguma palavra em que o critério de verdade é posto à prova. Ainda mais se ela não dispõe de nenhuma outra testemunha. Aliás, a bem da verdade, a criança sempre depende de si mesma em termos de testemunho, por conta de sua fragilidade. Nessas questões de foro íntimo, a criança é sempre a mais eloquente testemunha de si mesma. Foi isso que ocorreu com aquele menino lá no interior da Paraíba, pelas bandas de um pequeno açude conhecido como Açudinho. O encanto deste conto [i] aconteceu na segunda metade dos anos 1950.

O menino estava sozinho. Era a única testemunha de seus próprios atos, pois com ninguém mais contava além da natureza que o cercava. Perambulava pela parede do açude, enquanto olhava os arredores e tentava encontrar um alvo fácil de ser atingido pela pequena pedra de sua baleadeira [ii], também conhecida naquela região como peteca. Geralmente, pássaros variados e até mesmo patos vinham beber das águas do açude. A sede causada pelo clima quente era terrível e aquele lençol d’água em pleno sertão era um grande chamariz. O nosso garoto sempre teve a atenção voltada para as belezas da natureza, sobretudo pela maior delas: patos voando. O que mais atraía sua atenção era o porte elegante daquelas aves, que cruzavam os céus geralmente despidos de nuvens. Encantava-se com seus longos pescoços e com as patas sempre dispostas bem estiradas em sentido vertical ao corpo, enquanto voavam nas alturas e deixavam a marca indelével de sua passagem tão rápida. Seu olhar as acompanhava até perder de vista.

E como se não bastasse a intempérie climática do local, os pobres pássaros ainda tinham de tomar toda cautela com as crianças que perambulassem naquelas cercanias, pois algumas também eram ferozes predadoras, sempre munidas de armas mortais, coisa que nenhum pássaro conseguia descobrir, por mais esforço que fizesse. E ali estava um garoto andando sozinho pela parede do açude, como que à toa, à cata de uma vítima de porte, inteligência e estratégia bem diferentes e até inferiores da sua.

De repente, os olhos do menino param num ponto fixo. Entre os galhos da pequena árvore quase sem folhas, logo ali à frente, ele notou um movimento que chamou sua atenção. Aguçou bem o olhar e notou a pequena rolinha quieta, parada, parecendo adormecida. Bem que a pobre coitada merecia uma sesta após os goles d’água que tomara à beira do açude. Mas nossa criança não estava preocupada com o merecido descanso daquele pequeno pássaro, e nem com o direito que ele tinha de viver e explorar a natureza ao seu derredor. O que a preocupava era outra coisa. Ela queria aquela rolinha em suas mãos, peladinha e assando nas brasas do fogão de sua casa. Falar nisso, a saliva já começava a mostrar seu efeito na boca do pequeno caçador. Ele estava ansioso para conseguir seu intento.

Com muita paciência e lentidão, começou a se ajeitar para desferir o golpe. Daria tudo para que seus movimentos não espantassem a presa que estava a seu alcance. A natureza cooperava com ele, pois as poucas folhas das árvores sequer se mexiam. O vento foi mui amigo nessa hora. Nenhuma pessoa havia ali por perto. Até mesmo os demais pássaros emudeceram diante da cena. Tudo contribuía para que o menino tivesse pleno êxito na sua caçada. Até a rolinha como que se colocava de peito aberto a poucos metros de seu pequeno algoz que, com movimentos sutis, dava furtivos passos na direção da vítima sem que ela disso se apercebesse. Tudo que ele queria era chegar com o lindo troféu em casa, como seu primeiro prêmio de caçador mirim.  

Com a arma em mãos, o pequeno se ajeitou, empunhou a baleadeira na posição correta e a direcionou exatamente na direção do peito da pobre coitada. Retesou aquela espécie de arco o máximo que pôde, liberou a pedra fatídica e notou que ela foi no prumo do coração da emplumada. Percebeu que ela cambaleou no galho, feito bêbado vencido pela bebida, e caiu na direção do solo. O coração do garoto vibrou de emoção naquele momento histórico. Só não fez chorar, mas berrou com toda a força de sua voz mirim: “Consegui, consegui!” E aí não teve dúvidas: correu até ao local onde o pobre passarinho caíra. Exaurido como estava, por causa do calor e da sede, mesmo assim chegou rapidamente ao ponto exato onde estaria o prêmio máximo da batalha vencida, ainda inconsciente de que seu inimigo era tão pequeno e estava completamente desprovido de qualquer tipo de arma de defesa. Talvez por isso mesmo sentiu um toque diferente mexendo com seu íntimo, como que alertando para o ato de covardia diante de um pequeno e indefeso pássaro.

Ficou abismado com o que viu quando seu olhar pousou no lugar onde a rolinha caíra. Nem marca havia, nem penas, nem pássaro, nem nada. “Já sei”, pensou, “ela foi baleada e saiu cai aqui cai acolá. Portanto, deve estar morta em algum lugar!” Resolveu, então, sair em busca daquela promessa de refeição, e se mandou pelo meio do mato à procura da pequena preciosidade. Quanto mais procurava, mais se dava conta da inutilidade de sua busca. Certeza ele tinha, ah, isso ele tinha, de que atingira o alvo. Estava convicto, ainda, de que a vira cair como morta, praticamente a seus pés.

Ora, se criança não mente, essa criança, que ainda vive na pele de uma feliz senectude, também não está mentindo. E o que vem depois da parede do açude e do retorno a sua casa, disso não está lembrado. O de que lembra é que matou a rolinha e ela deve ter saído correndo mesmo depois de morta. Foi o jeito que a pobrezinha encontrou para se livrar de seu predador de uma vez por todas. De certa maneira, a vítima também se tornou heroína e não se deixou carregar como um troféu de um pequeno e incipiente caçador que estava a fim de assá-la e sentir seu delicioso sabor.

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O MENINO, O MAR E A DIVINDADE

Joran Diniz Rufino

Hoje é o último dia do ano de 2020. Tive nessa despedida de 2020 um momento de meditação em um pedaço de terra dentro do mar (na Ilha de Itamaracá). Instante que vale compartilhar, pelo frescor e incrível acesso que todos nós temos oportunidade o tempo todo de ter.

É, me afastei um pouco de alguns familiares e amigos para ficar em um braço de mar bem raso de água, mas cheio de exuberância da natureza; situação que estimulou bastante um bom mergulho no meu interior. Poxa vida, como é renovador um momento com essa profundidade de contemplação.

Depois de algum tempo de contato com a essência daquela paisagem viva, Nicolas aparece naquela pequena ilha vindo em minha direção, passos de um menino que deixou apenas há algum tempo o andar de bebê, porque já é um menino de três anos, cinco meses e vinte e cinco dias. Mas o seu caminhar ainda revela os passos de um recém-chegado neste planeta.

Ele deixou a mãe, a avó voínha, a tia e alguns amigos que estavam a uns cem metros de mim e veio em minha direção. Nessa hora, toda a força da natureza estava naqueles passos, naquela pessoa que me escolheu como pai. Essa vinda dele responde a uma antiga pergunta que me fazia quando chegava a pontos bem silenciosos de oração como esse, que era: quem tá comigo em um momento desses, tão alto assim?  E nessa vinda de Nicolas, é como se o universo renascesse para me oferecer a resposta, nesse sentido do Ser que caminha por esse lugar através da nossa disponibilidade. Aí pronto, nessa vinda dava para escutar ele cantarolando e olhando para os pezinhos pisando na areia com água, só que ele perdia direção e voltava a me procurar para ter a referência para onde estava indo. E veio se aproximando mais e mais até chegar rindo e me perguntando: "Pai, por que você tava mudando de lugar o tempo todo?", disse que não, que tava no mesmo lugar. E ele foi brincando com a areia, com as folhas, com as conchinhas e com a água ao redor, até que a água salgada entrou no olho dele e ele não gostou. Começou a chorar, fechar os olhos com força e querer mamãe. Vi que ele não me deixava olhar o olhinho dele para ajudar, mas senti também que aquele estado de paz e meditação continuava. Então, comecei a cantarolar com o barulho das ondas e do vento até que o choro parou e ele deitou no meu peito e amoleceu, até que pensei que ele estaria dormindo, mas não... era calma mesmo. Depois de muito tempo, levantei com ele no braço e vim andando muito devagar em direção à mãe e aos outros e repeti para ele algo que tinha dito assim que chegamos naquele lugar, antes de ter ido para o meu/nosso Instante, eu disse umas três vezes com alegria apontando para o céu, terra e mar: "Filho, isso é tudo nosso". Desse jeito, eu disse novamente... aí chegamos na parte principal da história, que foi esse diálogo:

Nicolas: "Pai, é tudo culpa!"

Pai: “Como culpa, filho, o que é culpa?”

Nicolas: "O celular e o ventilador. Tudo é culpa Pai!”

Pai: “E a gente, filho?”

Nicolas: "A gente não, pai, a gente tá com Deus!"

Fico grato, com toda limitação dessa escrita ainda sem correção ter essa história narrada. Mais gratidão ainda pelo filho, pela família, pelos amigos e pela possibilidade de um ano Novo nessa Paz. Gratidão de Verdade, pelo encontro nesse achado com Nicolas: "A GENTE TÁ EM DEUS, PAI!".

FELIZ ANO NOVO, AMADOS!



[i] Esse texto faz parte dos escritos que estou produzindo já há algum tempo sobre o encanto dos meus contos com acréscimos e descontos, cuja inspiração me ocorreu por ocasião da leitura de "Todos os contos", de Clarice Lispector.

[ii] A partir da juventude ele já não faria uma coisa dessas, pois passou a respeitar os pássaros e seu direito à liberdade e à vida.

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GALERIA DE FOTOS


Joran, autor do segundo texto desta publicação.


Nicolas e sua sabedoria divina.


Bianca (esquerda) e Beatriz em momento de descontração. Enquanto Bianca segura a bolinha com as mãos, Beatriz faz a magia de segurar a bolinha solta no ar. Você pode decifrar essa charada e responder de que maneira ela conseguiu a proeza?


O autor do conto ousando pular repetidamente nas águas do Velho Chico, em Petrolina, mesmo tendo pago o alto preço de ficar com as coxas que eram sangue puro.