domingo, 5 de julho de 2020

PASTOR JOSÉ BRITTO BARROS: UM PRÍNCIPE DE DEUS


08 xii 1989: Pastor Britto aparece refletido no sombreado da cortina. Ele foi orador oficial na comemoração do meu Décimo Ano de Pastorado na Primeira Igreja Batista de Beberibe.

enivaldo ufino

Este artigo[i] é resultado parcial de uma monografia do mestrado em teologia, na qual analisei o trabalho homilético do pastor José Britto Barros (1930‒2018, 88). Ao concluir a disciplina no Seminário Batista de Recife enviei cópia ao querido pastor, cuja amizade, na época, já se estendia há mais de vinte anos. Ele contratou a gráfica e transformou a monografia em livro para me surpreender. De fato, fiquei emocionado ao receber o livro devidamente oferecido e autografado, junto a outras cópias também assinadas por ele. Sua dedicatória é perpassada de atenção e cuidado pastoral:

Meu caro Reni, creio que lhe disse da minha surpresa quando me revelou que ia escrever sobre meu trabalho de pregador. Depois, quando recebi a cópia e a li, foi muito emocionante para mim, especialmente porque sei e conheço seu espírito de imparcialidade e equilíbrio. Talvez tenha sido esta a maior honra humana que recebi no exercício do glorioso Ministério que o Senhor bondosa e misteriosamente me confiou. Poucos exemplares serão oferecidos e desses poucos um teria de ser o seu e o faço com muita gratidão e muito amor. Deus abençoe ricamente sua preciosa vida em todos os sentidos, ao lado dos seus queridos. Com gratidão e amor, meu grande e afetuoso abraço, Pelo coração, sou o de sempre ‒ Pastor Britto. JPessoa, 20/10/95.
Ao ler o livro que recebeu o mesmo nome da disciplina, ou seja, “Grandes pregadores e sua pregação”[ii], não pude fugir ao hábito que me acompanha desde antes de entrar na academia, qual seja o de ler revisando e revisar lendo[iii]. Notei que o texto necessitaria de uma nova versão cuidadosamente corrigida, por conta de deslizes da gráfica. Dediquei-me à tarefa extenuante de tentar revisar as 139 páginas, mesmo com as ocupações do mestrado e, já em 1997, da graduação em filosofia. E uma vez que minhas responsabilidades aumentavam ainda mais, pois logo surgiria o desafio do mestrado em filosofia, na Universidade Federal de Pernambuco, e do doutorado na USP, o projeto ficou inacabado. Ao retornar de São Paulo assumi o magistério universitário em duas instituições, o que me impediu de dar continuidade ao que planejara.
Quando é agora o antigo sonho volta a mexer comigo de maneira recorrente. Ainda mais quando leio minhas palavras de gratidão na tese, dirigidas a
José Britto Barros, com quem mantenho uma sólida amizade há mais de trinta e cinco anos. Ele nem imagina que a pequena frase que escreveu numa carta de 07.10.1999, antes mesmo do meu mestrado em filosofia, um dia se concretizasse: “[...] parta para o doutorado de Filosofia”. Trata-se de alguém que muito me incentiva em todo esse tempo, e que é um verdadeiro pregador da palavra de Cristo há cinquenta e cinco anos, inclusive para crianças, por todo o território brasileiro, enfrentando perigos e pagando o alto preço de abraçar com tanta convicção e tanto carinho a baixeza da pregação, loucura para os homens, porém sabedoria de Deus, sabedoria da suprema sabedoria, como diz Agostinho de Hipona (354-430, 75).
Outros colegas do mestrado em teologia demonstraram interesse em escolher meu objeto de estudo. É que o pastor Britto se tornou célebre pela qualidade dos sermões, pela excelência homilética e pela ética pastoral. Infelizmente, só convivi um ou dois meses a seu lado. Percebi, todavia, sua preocupação e cuidado como pastor. Eu estava de saída para o seminário quando ele chegou para o segundo pastorado na Primeira Igreja Batista de Campina Grande, em 1975. Mesmo assim, agendou encontros para me orientar em termos da minha escolha pessoal. Aconselhou e escreveu orientações a um seminarista e ainda fez algumas pastorais a mim dirigidas através do boletim da igreja, como a “Sétima Pastoral, A um jovem que vai ao Seminário”, escrita em 2 de março de 1975:
Renivaldo, Hoje tu és uma ovelha do meu rebanho, amanhã tu serás meu colega no exercício deste Ministério Glorioso que por Deus nos foi designado. Nesta hora que partes, empreendendo a jornada do preparo ministerial, quero dizer-te algumas coisas que poderão ajudar-te no desempenho da carreira que o Senhor te entregou. Quando alguém está partindo para o serviço do Mestre, sempre o faz como Abraão: “Sem saber para onde ia” confiando plenamente no Senhor da Seara. Assim deves colocar-te nas mãos de Deus sem escolhas predeterminadas, antes disposto a seguir aonde quer que for. Nessa jornada deves manter a tranquilidade dos que seguem acompanhados por Jesus: “Eis que eu estou convosco todos os dias”; haverá dias de luz e dias de sombras, dias de semeadura e dias de colheita, dias de prazer e dias de desdouro, dias de chuvas de bênçãos e dias de estio aterrador, dias de vibração e dias de desânimo. Mas Ele estará contigo sempre; esta certeza deve acompanhar-te a cada momento. Os que partem nesta caminhada devem estar prontos a entregar-se de corpo e alma no mister sublime do serviço de Deus: “Em nada tenho a minha vida por preciosa, conquanto que complete a minha carreira e cumpra com alegria o ministério que recebi do Senhor para dar testemunho do evangelho da graça de Deus”. Só esta disposição te dará a tranquilidade plena de estar obedecendo ao Senhor sem restrições. Os acenos do mundo serão muitos, as investidas de Satan serão fortes, mas a alegria de servir a Jesus supera tudo isso e nele encontrarás os recursos à vitória completa. Sê tu mesmo; aprende com outros, mas não te tornes carbono de ninguém; Deus te usará como indivíduo dentro da autenticidade de tua fé, no exercício dos dons com que Ele te agraciou. Quando fores Pastor então já não terás um Pastor terreno. Quero porém que possas considerar-me naquele tempo mais que um colega, um amigo leal. Vai, jovem, e submete tua vida ao Senhor na certeza de que maravilhas irão acontecer para glorificação do Nome Precioso. Com estima, o irmão e amigo, Pastor José Britto Barros.
Mesmo distantes sempre estivemos perto, tanto através de dezenas de cartas quanto nos momentos em que pastor Britto pregava em alguma igreja em Recife. Lembro-me que certa ocasião ele foi convidado pela Primeira Igreja Batista e consegui levar um padre conhecido meu para ouvi-lo. O sermão proferido foi de grande beleza e retórica irrepreensível: “Quando as evidências não bastam”. O padre saiu impressionado com o conteúdo da mensagem.
Ao escolher o nome do pastor Britto, atendendo exigências da disciplina, contatei com ele de imediato. Sua presteza e atenção não me surpreenderam. Ele me confiou todo o material de que eu necessitava, inclusive preciosos esboços de célebres sermões. Agradecido por tamanho privilégio, devolvi tudo ao concluir a matéria. Desde que o escolhi como objeto de estudo, comecei a acompanhá-lo, gravar os sermões e transcrevê-los no computador. Quinze desses sermões constam da monografia. O registro é feito na sequência da fala, do horário, das ilustrações e das reações das pessoas que o escutavam. Tive a alegria, ainda, de contar com sua presença quando fui arguido no trabalho final do mestrado em teologia, pela banca examinadora composta por Paulo Siepierski (orientador), Merval Rosa e Lídice Gramacho.
Rever, ler, debruçar-me e trabalhar nas análises homiléticas desse material, depois de tanto tempo, é extremamente emocionante. Eu me sinto recompensado quer com o cumprimento do projeto interrompido, quer com a saudosa homenagem ao nosso querido pastor Britto e, ainda, com o delicioso “favo de mel” disponível a tantas pessoas que tiverem o privilégio de se aproximarem e degustarem esses sermões memoráveis e a trajetória desse gigante dos púlpitos e príncipe entre os pregadores. Fiel à modéstia que lhe era característica, eu jamais ousaria nomeá-lo como o príncipe dos pregadores, pois fugiria completamente à humildade que era uma de suas virtudes básicas.
Preciso dizer, ainda, que um nome que consta do meu caderno de dívidas com o pastor Brito é o de Antônio Vieira (1608-1697, 89), jesuíta português, pregador, missionário, diplomata e grande figura intelectual luso-brasileira do século dezessete. Chegamos a conversar sobre minha ideia. Caso avançasse ao doutorado em teologia, como era minha intenção desde que cheguei a Recife em 1975, meu objeto de estudo seria uma tentativa um tanto complexa da relação entre os dois pregadores, levando em conta o estilo retórico e as figuras de linguagem de seus sermões. O projeto foi interrompido, pois me bandeei para a área não menos difícil da filosofia. De certa maneira, ao concluir o mestrado em teologia com uma dissertação sobre a influência carismática na Primeira Igreja Batista de João Pessoa, da qual ele era membro e colaborador, antecipei o resgate dessa dívida ao incluir o trabalho com crianças em parte de um capítulo, e uma longa entrevista que ele me concedeu, que constaram dos anexos. O mais impressionante é o fato de, por mera coincidência, eu ter levado a temática da infância para a tese de doutorado, ter sido bem aceito pelo orientador[iv], pela academia, e tudo com excelente resultado.
Uma das recomendações dadas em sala de aula, como exigência básica para um trabalho desses, foi que o aluno tentasse desmistificar o personagem escolhido. Trata-se de uma tarefa delicada e complexa, mesmo diante do imperativo de não fazer da monografia um “dossiê de canonização”. Tal tentativa seria, em termos teológicos, uma heresia docética, ou seja, escrever sobre o candidato dando ênfase, apenas, a seu lado divino e esquecer o lado humano. Ora, tudo que é humano é modesto, é limitado, é propenso a falhas, que são coisas comuns e próprias da humanidade. Mesmo assim, ainda existe muito de docetismo, e não apenas nesse meio.
Até mesmo o título pode levar alguém a pensar justamente uma coisa dessas, ou seja, que se trata de um dossiê de canonização. Como e por que tratar um pregador de “príncipe de Deus”? Talvez, para tentar colocar tudo em seu devido lugar, pode-se pensar apenas em príncipe, pois a Escritura hebraica está cheia dessa nomeação para seres humanos e metafísicos. Os doze cabeças das tribos de Israel são chamados príncipes. Faraó tem também seus príncipes. Em Gênesis xxiii, 6, os canaanitas filhos de Hete, chamaram a Abraão de “príncipe de Deus”. Quando Jacó atravessa o vau de Jaboque, conforme Gênesis xxxii, 28, o estranho com quem lutou até ao romper do dia disse-lhe que como príncipe ele lutara com Deus e com os homens e prevalecera. Finalmente, o arcanjo Miguel é também chamado de príncipe, em Daniel x, 21. Ocorre que essa palavra, como está sendo usada aqui, tem um sentido metafórico e figurativo. O pastor José Britto Barros é um príncipe de Deus por conta de seus atributos humanos, de sua qualificação e experiência como pregador cristão, apesar de suas limitações. Vale a pena frisar que ele mesmo ressaltou e elogiou uma obscura frase da monografia, onde é dito: “Apreciado por muitos e criticado por outros...” O subtítulo do presente artigo não vem da Bíblia, mas da missionária Edith Vaughn, conforme entrevista concedida. Dona Edith nutria grande admiração pelo pastor Britto. Sendo assim, a qualificação como príncipe de Deus não é canonização, mas reconhecimento e preito de gratidão a quem tanto colaborou em atividades humanas, usando qualidades humanas, durante tantos anos.
Após a escolha do nome e o contato mantido por telefone, uma data foi determinada, quando fiz longa entrevista e ele me repassou o rico material que serviu de base à pesquisa, que é apenas parte do acervo de José Britto Barros. Fiquei muito feliz e agradecido pela confiança em passar as minhas mãos todo esse importante material de sua biblioteca particular.  
Assim como faço com os acréscimos e descontos nos meus contos, pretendo fazer com a ampliação deste texto para possível publicação em formato de livro. Após tantos anos do projeto inicial, é preciso alguns acréscimos e alguns descontos no que foi publicado, quer na monografia, quer no livro lançado em pequena quantidade e com necessidade de revisão. Sendo assim, o texto contará com algum material da dissertação do mestrado em teologia, concluído em 1999, desde que trate do ministério do pastor Britto. Outro item que será acrescentado, por conta da minha formação atual, é uma relação entre a noção de Deus na filosofia e na pregação desse príncipe de Deus que foi também um gigante dos púlpitos.
 
05.01.1975: Pastor Britto e família no dia da posse na Primeira Igreja Batista de Campina Grande, para o segundo pastorado.

[i] Proibida qualquer reprodução ou citação deste artigo sem autorização do autor.
[ii] O professor Jilton Moraes, que ministrou a disciplina, não se sentiu confortável quando soube da publicação do livro com o mesmo título da matéria.
[iii] Conferir, a propósito, minha tese de doutorado na citação a seguir ou pelo site da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, abaixo: RUFINO, J. R. Relevância filosófica das pequenas coisas: a infância no livro I das Confissões de Agostinho de Hipona. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2010. Tese de doutoramento inédita. 280 p., p. 30: Agostinho lembra, em carta escrita a Marcelino, que escreve progredindo e progride escrevendo (Epístola cxliii, 2) e, também, prólogo 3 das Revisões, “Quem ler as minhas pequenas obras (opuscula) na ordem em que foram escritas, talvez descobrirá de que modo eu progredi à medida que as escrevia”. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-21062011-081831/
[iv] Já no último semestre do doutorado recebi mensagem do orientador, doutor Moacyr Novaes, que me deixou ainda mais consciente de que estava trilhando o caminho certo. Assim escreveu: “Estou lendo sua tese. Um trabalho notável, pela qualidade do texto e pelo desenvolvimento das ideias. Estou feliz por você, e orgulhoso por receber os imerecidos méritos de orientador”.