08 xii 1989: Pastor Britto aparece
refletido no sombreado da cortina. Ele foi orador oficial na comemoração do meu
Décimo Ano de Pastorado na Primeira Igreja Batista de Beberibe.
ℛenivaldo
ℛufino
Este artigo[i] é resultado parcial de uma monografia do
mestrado em teologia, na qual analisei o trabalho homilético do pastor José
Britto Barros (1930‒2018, 88). Ao concluir a disciplina no Seminário Batista de
Recife enviei cópia ao querido pastor, cuja amizade, na época, já se estendia
há mais de vinte anos. Ele contratou a gráfica e transformou a monografia em
livro para me surpreender. De fato, fiquei emocionado ao receber o livro
devidamente oferecido e autografado, junto a outras cópias também assinadas por
ele. Sua dedicatória é perpassada de atenção e cuidado pastoral:
Meu caro Reni,
creio que lhe disse da minha surpresa quando me revelou que ia escrever sobre
meu trabalho de pregador. Depois, quando recebi a cópia e a li, foi muito
emocionante para mim, especialmente porque sei e conheço seu espírito de
imparcialidade e equilíbrio. Talvez tenha sido esta a maior honra humana que
recebi no exercício do glorioso Ministério que o Senhor bondosa e
misteriosamente me confiou. Poucos exemplares serão oferecidos e desses poucos
um teria de ser o seu e o faço com muita gratidão e muito amor. Deus abençoe
ricamente sua preciosa vida em todos os sentidos, ao lado dos seus queridos.
Com gratidão e amor, meu grande e afetuoso abraço, Pelo coração, sou o de
sempre ‒ Pastor Britto. JPessoa, 20/10/95.
Ao ler o livro que recebeu o
mesmo nome da disciplina, ou seja, “Grandes pregadores e sua pregação”[ii],
não pude fugir ao hábito que me acompanha desde antes de entrar na academia,
qual seja o de ler revisando e revisar lendo[iii].
Notei que o texto necessitaria de uma nova versão cuidadosamente corrigida, por
conta de deslizes da gráfica. Dediquei-me à tarefa extenuante de tentar revisar
as 139 páginas, mesmo com as ocupações do mestrado e, já em 1997, da graduação
em filosofia. E uma vez que minhas responsabilidades aumentavam ainda mais,
pois logo surgiria o desafio do mestrado em filosofia, na Universidade Federal
de Pernambuco, e do doutorado na USP, o projeto ficou inacabado. Ao retornar de
São Paulo assumi o magistério universitário em duas instituições, o que me
impediu de dar continuidade ao que planejara.
Quando é agora o
antigo sonho volta a mexer comigo de maneira recorrente. Ainda mais quando leio
minhas palavras de gratidão na tese, dirigidas a
José Britto
Barros, com quem mantenho uma sólida amizade há mais de trinta e cinco anos.
Ele nem imagina que a pequena frase que escreveu numa carta de 07.10.1999,
antes mesmo do meu mestrado em filosofia, um dia se concretizasse: “[...] parta
para o doutorado de Filosofia”. Trata-se de alguém que muito me incentiva em
todo esse tempo, e que é um verdadeiro pregador da
palavra de Cristo há cinquenta e cinco anos, inclusive para crianças, por todo
o território brasileiro, enfrentando perigos e pagando o alto preço de abraçar
com tanta convicção e tanto carinho a baixeza da pregação, loucura para os
homens, porém sabedoria de Deus, sabedoria da suprema sabedoria, como diz
Agostinho de Hipona (354-430, 75).
Outros colegas do
mestrado em teologia demonstraram interesse em escolher meu objeto de estudo. É
que o pastor Britto se tornou célebre pela qualidade dos sermões, pela excelência
homilética e pela ética pastoral. Infelizmente, só convivi um ou dois meses a
seu lado. Percebi, todavia, sua preocupação e cuidado como pastor. Eu estava de
saída para o seminário quando ele chegou para o segundo pastorado na Primeira
Igreja Batista de Campina Grande, em 1975. Mesmo assim, agendou encontros para
me orientar em termos da minha escolha pessoal. Aconselhou e escreveu
orientações a um seminarista e ainda fez algumas pastorais a mim dirigidas
através do boletim da igreja, como a “Sétima Pastoral, A um jovem que vai ao
Seminário”, escrita em 2 de março de 1975:
Renivaldo,
Hoje tu és uma ovelha do meu rebanho, amanhã tu serás meu colega no exercício
deste Ministério Glorioso que por Deus nos foi designado. Nesta hora que
partes, empreendendo a jornada do preparo ministerial, quero dizer-te algumas
coisas que poderão ajudar-te no desempenho da carreira que o Senhor te
entregou. Quando alguém está partindo para o serviço do Mestre, sempre o faz
como Abraão: “Sem saber para onde ia” confiando plenamente no Senhor da Seara.
Assim deves colocar-te nas mãos de Deus sem escolhas predeterminadas, antes
disposto a seguir aonde quer que for. Nessa jornada deves manter a tranquilidade
dos que seguem acompanhados por Jesus: “Eis que eu estou convosco todos os
dias”; haverá dias de luz e dias de sombras, dias de semeadura e dias de
colheita, dias de prazer e dias de desdouro, dias de chuvas de bênçãos e dias
de estio aterrador, dias de vibração e dias de desânimo. Mas Ele estará contigo
sempre; esta certeza deve acompanhar-te a cada momento. Os que partem nesta
caminhada devem estar prontos a entregar-se de corpo e alma no mister sublime
do serviço de Deus: “Em nada tenho a minha vida por preciosa, conquanto que
complete a minha carreira e cumpra com alegria o ministério que recebi do
Senhor para dar testemunho do evangelho da graça de Deus”. Só esta disposição
te dará a tranquilidade plena de estar obedecendo ao Senhor sem restrições. Os
acenos do mundo serão muitos, as investidas de Satan serão fortes, mas a
alegria de servir a Jesus supera tudo isso e nele encontrarás os recursos à
vitória completa. Sê tu mesmo; aprende com outros, mas não te tornes carbono de
ninguém; Deus te usará como indivíduo dentro da autenticidade de tua fé, no
exercício dos dons com que Ele te agraciou. Quando fores Pastor então já não
terás um Pastor terreno. Quero porém que possas considerar-me naquele tempo
mais que um colega, um amigo leal. Vai, jovem, e submete tua vida ao Senhor na
certeza de que maravilhas irão acontecer para glorificação do Nome Precioso.
Com estima, o irmão e amigo, Pastor José Britto Barros.
Mesmo
distantes sempre estivemos perto, tanto através de dezenas de cartas quanto nos
momentos em que pastor Britto pregava em alguma igreja em Recife. Lembro-me que
certa ocasião ele foi convidado pela Primeira Igreja Batista e consegui levar
um padre conhecido meu para ouvi-lo. O sermão proferido foi de grande beleza e
retórica irrepreensível: “Quando as evidências não bastam”. O padre saiu
impressionado com o conteúdo da mensagem.
Ao
escolher o nome do pastor Britto, atendendo exigências da disciplina, contatei
com ele de imediato. Sua presteza e atenção não me surpreenderam. Ele me confiou
todo o material de que eu necessitava, inclusive preciosos esboços de célebres
sermões. Agradecido por tamanho privilégio, devolvi tudo ao concluir a matéria.
Desde que o escolhi como objeto de estudo, comecei a acompanhá-lo, gravar os
sermões e transcrevê-los no computador. Quinze desses sermões constam da
monografia. O registro é feito na sequência da fala, do horário, das
ilustrações e das reações das pessoas que o escutavam. Tive a alegria, ainda,
de contar com sua presença quando fui arguido no trabalho final do mestrado em
teologia, pela banca examinadora composta por Paulo Siepierski (orientador),
Merval Rosa e Lídice Gramacho.
Rever,
ler, debruçar-me e trabalhar nas análises homiléticas desse material, depois de
tanto tempo, é extremamente emocionante. Eu me sinto recompensado quer com o
cumprimento do projeto interrompido, quer com a saudosa homenagem ao nosso
querido pastor Britto e, ainda, com o delicioso “favo de mel” disponível a
tantas pessoas que tiverem o privilégio de se aproximarem e degustarem esses
sermões memoráveis e a trajetória desse gigante dos púlpitos e príncipe entre
os pregadores. Fiel à modéstia que lhe era característica, eu jamais ousaria
nomeá-lo como o príncipe dos pregadores, pois fugiria completamente à humildade
que era uma de suas virtudes básicas.
Preciso
dizer, ainda, que um nome que consta do meu caderno de dívidas com o pastor
Brito é o de Antônio Vieira (1608-1697, 89), jesuíta português, pregador,
missionário, diplomata e grande figura intelectual luso-brasileira do século
dezessete. Chegamos a conversar sobre minha ideia. Caso avançasse ao doutorado
em teologia, como era minha intenção desde que cheguei a Recife em 1975, meu
objeto de estudo seria uma tentativa um tanto complexa da relação entre os dois
pregadores, levando em conta o estilo retórico e as figuras de linguagem de
seus sermões. O projeto foi interrompido, pois me bandeei para a área não menos
difícil da filosofia. De certa maneira, ao concluir o mestrado em teologia com
uma dissertação sobre a influência carismática na Primeira Igreja Batista de
João Pessoa, da qual ele era membro e colaborador, antecipei o resgate dessa
dívida ao incluir o trabalho com crianças em parte de um capítulo, e uma longa
entrevista que ele me concedeu, que constaram dos anexos. O mais impressionante
é o fato de, por mera coincidência, eu ter levado a temática da infância para a
tese de doutorado, ter sido bem aceito pelo orientador[iv],
pela academia, e tudo com excelente resultado.
Uma das
recomendações dadas em sala de aula, como exigência básica para um trabalho
desses, foi que o aluno tentasse desmistificar o personagem escolhido. Trata-se
de uma tarefa delicada e complexa, mesmo diante do imperativo de não fazer da
monografia um “dossiê de canonização”. Tal tentativa seria, em termos
teológicos, uma heresia docética, ou seja, escrever sobre o candidato dando
ênfase, apenas, a seu lado divino e
esquecer o lado humano. Ora, tudo
que é humano é modesto, é limitado, é propenso a falhas, que são coisas comuns
e próprias da humanidade. Mesmo assim, ainda existe muito de docetismo, e não
apenas nesse meio.
Até mesmo o título
pode levar alguém a pensar justamente uma coisa dessas, ou seja, que se trata
de um dossiê de canonização. Como e por que tratar um pregador de “príncipe de
Deus”? Talvez, para tentar colocar tudo em seu devido lugar, pode-se pensar
apenas em príncipe, pois a Escritura hebraica está cheia dessa nomeação para
seres humanos e metafísicos. Os doze cabeças das tribos de Israel são chamados
príncipes. Faraó tem também seus príncipes. Em Gênesis xxiii, 6, os canaanitas
filhos de Hete, chamaram a Abraão de “príncipe de Deus”. Quando Jacó atravessa
o vau de Jaboque, conforme Gênesis xxxii, 28, o estranho com quem lutou até ao
romper do dia disse-lhe que como príncipe ele lutara com Deus e com os homens e
prevalecera. Finalmente, o arcanjo Miguel é também chamado de príncipe, em
Daniel x, 21. Ocorre que essa palavra, como está sendo usada aqui, tem um
sentido metafórico e figurativo. O pastor José Britto Barros é um príncipe de
Deus por conta de seus atributos humanos, de sua qualificação e experiência
como pregador cristão, apesar de suas limitações. Vale a pena frisar que ele
mesmo ressaltou e elogiou uma obscura frase da monografia, onde é dito:
“Apreciado por muitos e criticado por outros...” O subtítulo do presente artigo
não vem da Bíblia, mas da missionária Edith Vaughn, conforme entrevista concedida.
Dona Edith nutria grande admiração pelo pastor Britto. Sendo assim, a
qualificação como príncipe de Deus não é canonização, mas reconhecimento e
preito de gratidão a quem tanto colaborou em atividades humanas, usando
qualidades humanas, durante tantos anos.
Após a escolha do
nome e o contato mantido por telefone, uma data foi determinada, quando fiz
longa entrevista e ele me repassou o rico material que serviu de base à
pesquisa, que é apenas parte do acervo de José Britto Barros. Fiquei muito
feliz e agradecido pela confiança em passar as minhas mãos todo esse importante
material de sua biblioteca particular.
Assim como faço com os acréscimos e descontos nos meus
contos, pretendo fazer com a ampliação deste texto para possível publicação em
formato de livro. Após tantos anos
do projeto inicial, é preciso alguns acréscimos e alguns descontos no que foi
publicado, quer na monografia, quer no livro lançado em pequena quantidade e
com necessidade de revisão. Sendo assim, o texto contará com algum material da
dissertação do mestrado em teologia, concluído em 1999, desde que trate do
ministério do pastor Britto. Outro item que será acrescentado, por conta
da minha formação atual, é uma relação entre a noção de Deus na filosofia e na
pregação desse príncipe de Deus que foi também um gigante dos púlpitos.
05.01.1975: Pastor Britto e família no dia da posse na Primeira Igreja Batista de Campina Grande, para o segundo pastorado.
[i]
Proibida qualquer reprodução ou citação deste artigo sem autorização do autor.
[ii] O professor Jilton Moraes, que ministrou a disciplina, não se
sentiu confortável quando soube da publicação do livro com o mesmo título da matéria.
[iii] Conferir, a propósito, minha tese de doutorado na
citação a seguir ou pelo site da
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, abaixo: RUFINO, J. R. Relevância filosófica das pequenas coisas:
a infância no livro I das Confissões
de Agostinho de Hipona. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, 2010. Tese de doutoramento inédita. 280 p., p. 30: Agostinho
lembra, em carta escrita a Marcelino, que escreve progredindo e progride
escrevendo (Epístola cxliii, 2) e,
também, prólogo 3 das Revisões, “Quem
ler as minhas pequenas obras (opuscula)
na ordem em que foram escritas, talvez descobrirá de que modo eu progredi à
medida que as escrevia”. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-21062011-081831/
[iv]
Já no último semestre do doutorado recebi mensagem do orientador, doutor Moacyr
Novaes, que me deixou ainda mais consciente de que estava trilhando o caminho
certo. Assim escreveu: “Estou lendo sua tese. Um trabalho notável, pela
qualidade do texto e pelo desenvolvimento das ideias. Estou feliz por você, e
orgulhoso por receber os imerecidos méritos de orientador”.